A revolução não será delatada
Escrito por Miguel do Rosário,
Assim começa o famoso – e maldito – poema de Gil Scott-Heron, a Revolução não será televisionada.
Há uma razão para os roteiristas de Homeland, a premiada série
política americana, incluírem trechos desse poema, recitados pelo
próprio Gil, na abertura de todos os episódios da temporada 6. O clímax
dramático da temporada acontece no episódio 11, quando Saul, ex-agente
da CIA, explica à presidenta eleita sobre os métodos usados por seus
adversários para enfraquecê-la.
Eu transcrevo a fala de Saul aqui, por motivos que vocês entenderão rapidamente conforme forem lendo:
É sério? É difícil ouvir o que vocês estão falando.Desculpem se pareço repetitivo, mas eu sinto necessidade de afirmá-lo
Porque o que eu estou ouvindo não é um plano. Rastrear o dinheiro?
Acreditem, é muito mais difícil do que pensam. Vocês ainda estarão
fazendo isso quando o mundo rolar por cima de suas cabeças. Por que não
conseguem enxergar? Está acontecendo debaixo de seus narizes! Já temos
O’Keefe (blogueiro de extrema-direita). Temos uma campanha de
desinformação projetada para desacreditar a presidenta eleita. E a
partir de hoje temos tropas em terra e os manifestantes dos quais me
desviei para chegar aqui. Isto não lhes é familiar? Porque para mim,
sim. Nós fizemos isso na Nicarágua, Chile, Congo, em vários outros
países, começando pelo Irã, nos anos 50. E o regime eleito se dá mal. A
vida de vocês está em jogo, entenderam? Vocês não podem se calar. E não
me refiro à coletiva de imprensa.
– Ao que você se refere?
– Você o intimou a mostrar a cara e foi o que ele fez. Você tem que enfrentá-lo.
novamente: o que está acontecendo no Brasil, com a Lava Jato, é um
golpe de Estado.
Assim como ocorre na trama de Homeland, e, na verdade, em quase todas
as histórias parecidas, os articuladores do golpe não são os políticos,
e sim as forças de segurança do próprio regime. No caso do Brasil, é a
Lava Jato, ponta-de-lança dos setores mais radicalizados desse monstro
de três cabeças que substituiu os militares de 1964: Ministério Público
Federal, Polícia Federal e Judiciário.
Em algum momento, esses três setores perceberam que, trabalhando juntos, poderiam assumir o poder político no país.
Para isso, é preciso disseminar uma quantidade faraônica de
desinformação, com vistas a desacreditar todo o sistema político, eleito
pela população.
Dalton Dallagnol, por exemplo, aproveitando-se do momento, tem
distribuído, via whatsapp, um artigo de José Padilha, que traz uma
análise primária, profundamente preconceituosa, cheia de exageros e
omissões, sobre o sistema político brasileiro. Não fala nada sobre
desigualdade de renda. Não fala nada, claro!, sobre concentração da
mídia.
É claro que o nosso sistema político tem milhares de falhas. Mas é
insanidade total destruí-lo sem termos nada para pormos em seu lugar.
Sobretudo, é antidemocrático e desonesto desacreditá-lo a golpes de delação.
Esse último espetáculo da Lava Jato me provocou profundas náuseas. No
vídeo com Emilio Odebrecht, vemos o procurador usar o interrogatório
para tentar incriminar a revista Carta Capital! É muita podridão! É
Emílio, o delator, o corruptor, o “vilão”, que tenta defender a revista,
explicando ao procurador que os adiantamentos de publicidade que fez à
Carta Capital também foram usados para o Estadão, Folha, Correio
Braziliense, para toda a imprensa brasileira!
Como a história se repete!
O “mar de lama” do tempo de Vargas era a Lava Jato daquela época. Os
mesmos jornais, representantes das mesmas forças reacionárias, acusavam o
governo de ter financiado, através do Banco do Brasil, a Última Hora,
de Samuel Wainer. Anos depois, Nelson Werneck Sodré, em sua História da
Imprensa Brasileira, resgata documentos que provam que (olha eles de
novo!) Folha, Estadão, Globo, Correio da Manhã, receberam
financiamentos, do mesmo Banco do Brasil, ainda maiores!
No post anterior, eu já explicitei esse raciocínio, mas gostaria de
aprofundá-lo: a delação (o fato de ser “premiada” apenas a torna ainda
mais ilegítima) é a representação mais perfeita da antiverdade.
O problema não se trata apenas de acreditar ou não numa delação, e sim dar legitimidade ao discurso de um delator!
Uma delação pode até conter várias verdades, mas a maneira como essas
verdades são contadas podem configurar a maior mentira de todas!
Se a imprensa comercial, que depende de sua credibilidade,
especializou-se, de maneira tão sofisticada, em produzir pós-verdades em
série, o que dizer de um delator?
O problema da informação política destinada às grandes massas é que
estas não são guiadas por informações verdadeiras, e sim por símbolos
fortes que vão de encontro a seu profundo irracionalismo, conforme
explica Wilhelm Reich, em Psicologia de Massas do Fascismo.
É assim que fazem os partidos políticos. É assim que fazem os grandes meios de comunicação.
A Lava Jato está legitimando, no topo da pirâmide social, a repressão
brutal e indiscriminada que sempre aconteceu embaixo. Por isso, não é
lógico que setores da esquerda defendam a operação com o argumento
infantil de que está “prendendo empresários e políticos”, ou
“desmontando o sistema político burguês”. O objetivo de um regime
democrático, seja de esquerda, socialista ou liberal, não é “prender
empresários e políticos”, e sim ampliar o conjunto de direitos e
liberdades à disposição da sociedade. Ou seja, temos que prender menos,
não mais. Se há políticos e empresários que cometeram crimes, que sejam
punidos, mas com direito amplo à defesa, inclusive o de responder ao
processo em liberdade!
Nos últimos dias, o STJ indeferiu habeas corpus para o Almirante
Othon Pinheiro e para o ex-ministro Pallocci. O judiciário tornou-se um
bloco monolítico em apoio às violências e arbítrios da Lava Jato, até
porque os ministros tem medo da operação. Um ou outro ministro do STJ
que ousou discordar de seus métodos foi rapidamente enquadrado através
do modus operandi da Lava Jato, que é vazar alguma coisa contra a
pessoa. Como a Lava Jato detêm o maior banco de dados do país, com dados
eletrônicos, telefônicos, fiscais, bancários, de milhares de pessoas,
não é difícil para seus operadores vazarem um trecho qualquer em que um
investigado menciona o nome de alguém. Daí essa nova categoria penal,
genial, terrível, que a imprensa adotou com tanto entusiasmo e cinismo,
como se tivesse existido desde sempre: o citado na Lava Jato. Fulano foi
“citado” na Lava Jato. Não quer dizer nada, mas é o bastante para se
iniciar um desgastante e paralisante processo de enlameamento da
reputação.
Luciana Genro, defensora da Lava Jato, acaba de sentir o bafo na
nuca, ao aparecer como recebedora de uma quantia de empresa vinculada à
Odebrecht.
Temos de tomar muito cuidado, porém, para não sucumbir às violências morais da Lava Jato.
A situação do PT é muito complicada do ponto-de-vista narrativo. Eles
tem de jogar não apenas contra um time infinitamente mais poderoso,
porque tem mídia, mas contra o próprio juiz!
Os militantes e operadores políticos do PT lutam com as armas que
conseguem, a custo de muito sacrifício, tomar das mãos de seus inimigos,
brandindo em suas redes pedaços de delações que possam neutralizar o
jogo de acusações e contra-acusações que um partido lança ao outro. É um
método perigoso, porque ao mesmo tempo que atinge o seu inimigo
partidário, também fortalece os operadores que atuam como adversários
políticos e jurídicos.
A leitura do livro Justiça Política, de Otto Keichmeiner, que relata
as aflições de operadores políticos europeus e russos, comunistas,
social-democratas, nazistas, liberais, de todos os credos, para
transformarem batalhas judiciais em capital político, me fez compreender
melhor os dilemas dos partidos brasileiros em meio à guerra jurídica.
Keichmeiner estuda generosamente o problema do “delator”, que é uma
figura sempre presente na justiça política. Ele explica que o delator
jamais falará a verdade. O delator tentará, invariavelmente, dizer
alguma coisa que beneficie a si mesmo, que agrade ao interrogador e que,
naturalmente, atinja com a maior violência possível o adversário das
forças que controlam o processo de delação.
A Lava Jato ainda tem cartas na mão. Ela pode prender quem ela quiser, e obrigar essa pessoa a delatar.
Isso sem contar os que já estão presos, e ainda não se decidiram a
delatar: Pallocci, Eike Batista, João Santana e sua esposa, Sergio
Cabral.
Qual a resistência psicológica de cada um desses antes de falar exatamente o que os procuradores querem ouvir?
A partir do momento em que se elege a “delação” como principal arma
política, e as críticas à delação são neutralizadas por uma estratégia
bastante sofisticada de relações públicas (que inclui vazamentos
cuidadosamente seletivos), então os órgãos de repressão detêm um poder
descomunal. Um delator pode dizer tudo que você quiser. Pode falar, por
exemplo, que um determinado dirigente político “sabia”. Que numa noite
tal, foi conversado “tal coisa”.
A ética desse tipo de investigação é deplorável. Aprovar e apoiar a
delação premiada foi mais um desses atos suicidas do PT que nasceram de
sua debilidade no campo do pensamento jurídico, e, mais genericamente,
de sua miséria intelectual, ao não criar um think tank que discutisse,
antes de tomar qualquer decisão, os seus prós e contras.
Delação é uma coisa negativa, antiética. O ser humano precisa ser
leal, sempre! Sem confiança, sem lealdade, não há política, não há
solidariedade, não há civilização.
Se alguém precisa denunciar um crime que testemunhou, de um político
ou empresário, que seja uma delação espontânea, baseada na consciência
de que está fazendo um bem à sociedade.
Premiar a delação é bizarro. Premiar uma delação extraída de alguém
sob tortura, sob ameaça de permanecer em “prisão cautelar” por tempo
indeterminado, é duplamente bizarro!
Quanto à questão de se “acreditar” numa delação, não creio que exista
nada mais profundamente antijornalístico ou mesmo antifilosófico.
Um jornalista não deveria acreditar nem em provas.
Um jornalista de verdade não deve acreditar em nada.
A história já mostrou muito bem que provas podem ser manipuladas, e que a nossa própria consciência nos prega um monte de peças.
Um jornalista não precisa “acreditar” em alguma coisa. Ele deve questionar. Questionar, sobretudo, o poder!
Cadê todos aqueles jornalistas que viviam dizendo que a imprensa
deveria questionar o poder? Onde está o questionamento do judiciário, da
Lava Jato, do Ministério Público, da própria grande imprensa?
O trabalho do jornalista deveria constituir, sempre, um contraponto à
violência do Estado. Se alguém é acusado pelo Estado, não compete ao
jornalista se aliar ao Estado na acusação. Um jornalista dotado de
espírito democrático, humanista e liberal deve ouvir, primordialmente, a
versão do acusado, porque ele é a parte frágil do processo.
A Lava Jato nos revela ainda uma outra coisa, extremamente importante: a demagogia é desonesta, hipócrita e cínica.
Testemunhamos, esse tempo todo, colunistas da grande imprensa
declarando que a justiça brasileira é boa porque está prendendo
“poderosos”, sem jamais lembrar aos espectadores/leitores uma coisa
óbvia. Os verdadeiros poderosos não vão presos. É exatamente por isso
que eles são poderosos. É uma questão lógica.
Se alguém é preso pela Lava Jato, isso é prova cabal de que esse
fulano não era tão poderoso como ele mesmo pensava. A Lava Jato pode
estar prendendo políticos e empresários, mas não poderosos!
A Lava Jato está revelando, com uma clareza solar, quem são os
verdadeiros poderosos no país: o Estado burocrático, não-político, em
primeiro lugar, representado por seus agentes de repressão; em segundo,
os barões da mídia; os banqueiros, em terceiro.
Encerro o post com um outro trecho do poema de Gil Scott-Heron:
A primeira revolução acontece quando você muda a sua
mente sobre como ver as coisas, e percebe que pode haver uma outra
maneira de olhar para elas que ainda não lhe mostraram. O que você vê
depois é o resultado disso, mas essa revolução, esta mudança que se
opera em sua maneira de ver, não será televisionada.
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