domingo, 2 de abril de 2017

Inteligência artificial pode trazer desemprego e fim da privacidade

Inteligência artificial pode trazer desemprego e fim da privacidade- Folha de S.Paulo






"Por muito agarrados que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria
diante da eternidade", diz o personagem de José Saramago no início da
"História do Cerco de Lisboa". Mas a morte, como componente
incontornável da vida, pode estar com os dias contados.





Ray Kurzweil, cientista da computação, inventor e futurologista, autor
de best-sellers sobre inteligência artificial e saúde, prevê que a vida
eterna vá se tornar tecnicamente possível a partir de 2029. Ou seja, em
12 anos.





O prognóstico poderia soar como desvario se Kurzweil não trabalhasse na
área de inovação de um dos chefes de fila da pesquisa sobre inteligência
artificial, o Google.





Além disso, ele está envolvido em façanhas como o reconhecimento ótico
de caracteres e a transmissão direta da linguagem falada para
impressoras.





Daí à eternidade não há muito mais que um passo –ao menos é nisso que
acreditam os adeptos do transumanismo. O movimento tem se desenvolvido
nos últimos 20 anos e procura melhorar o funcionamento do organismo
humano por meio da engenharia genética, das tecnologias da informação,
da nanotecnologia molecular e da inteligência artificial.





A humanidade, segundo os transumanistas, não é o ápice da evolução. A
ciência e a tecnologia podem nos fazer pós-humanos, ampliando nossas
capacidades muito além daquilo que um humano atual pode imaginar.





Transcendência ou morte. Eis o lema fundamental do transumanismo. De
fato, nossa inteligência pode superar a maioria das atuais limitações
biológicas. Nos próximos 20 anos, ciência e tecnologia provocarão em nós
e em nossa organização social muito mais mudanças do que as registradas
nos últimos 300 anos.





MÁQUINA INTELIGENTE





Na base de todas essas transformações está uma diferença crucial entre o progresso técnico contemporâneo e tudo que o precedeu.





Se a Revolução Industrial promoveu a substituição da força animal e,
posteriormente, do próprio trabalho humano por máquinas, agora é nossa
inteligência que vai sendo trocada por dispositivos eletrônicos cada vez
mais potentes.





O poder computacional desses aparatos dobra, em média, a cada dois anos.
Vejamos: o sequenciamento genético custava US$ 100 milhões em 2001 (R$
240,7 milhões, em valores de junho daquele ano) e US$ 10 milhões em 2008
(R$ 16,3 milhões, idem). Hoje, essas informações podem ser obtidas por
US$ 1.000 (R$ 3.100).





Os seis pequenos retângulos de silício que, em 1958, permitiram ao
Vanguard I (o quarto satélite lançado ao espaço e o primeiro alimentado
por energia solar) mandar informações à Terra custavam muitos milhares
de dólares por watt. Na década de 1970, o preço tinha caído para US$
100. Agora, a US$ 0,50, a energia solar já compete com o carvão. A
Agência Internacional de Energia Renovável estima que ela baixe a US$
0,05 ou 0,06 em oito anos.





Os dispositivos eletrônicos, além disso, não se confinam a um setor ou a
uma dimensão da vida social; eles se combinam. Todos os objetos com que
nos relacionamos se tornam meios de intensificar nossa conexão a redes
cada vez mais amplas.





A natureza exponencial (dada pela velocidade do aumento da capacidade
computacional) e combinatória das tecnologias atuais faz com que as
mudanças sejam incontornáveis e irreversíveis.





Os ganhos reais e potenciais dizem respeito às mais diversas áreas, da
geração de energia à produção de bens materiais, da agricultura de
precisão aos automóveis autônomos, da prevenção de doenças à criação
cultural, da organização urbana às finanças e à circulação de
informação.





Ao mesmo tempo, porém, ampliam-se a apreensão e os alertas relativos aos
riscos da evolução tecnológica, e eles partem de atores importantes.
Alguns não hesitam em comparar esses riscos aos representados pelos
artefatos nucleares e pelas mudanças climáticas.





A diferença é que a corrida nuclear e as mudanças climáticas estão
enquadradas por algum tipo de acordo e de governança global, mesmo que o
resultado dessas iniciativas seja contestável.





AMEAÇAS





Quanto ao avanço da inteligência artificial, não há nenhuma coordenação
nem sequer para sinalizar as ameaças –dentre as quais destacam-se
quatro. A primeira refere-se não tanto ao poder desse conjunto de
tecnologias, mas, sobretudo, a sua autonomia.





Nick Bostrom, professor de filosofia em Oxford (Inglaterra) e um dos
expoentes do transumanismo, publicou em 2014 o livro "Superintelligence.
Paths, Dangers, Strategies" (Oxford University Press; superinteligência
- caminhos, perigos e estratégias), que se tornou best-seller nos
Estados Unidos. Na obra, afirma que a superinteligência "é,
possivelmente, o mais importante e intimidador desafio que a humanidade
jamais enfrentou".





Bostrom compara nosso uso da inteligência artificial ao que faz uma
criança brincando com uma bomba. O que está em jogo, de acordo com ele,
muito mais que uma explosão, é nossa capacidade de manter a própria
condição humana.





Essa preocupação já estava presente entre os pioneiros da inteligência
artificial, nos anos 1950. Eles haviam percebido que as máquinas
poderiam fazer muito mais do que simplesmente pensar numericamente. Eram
(e, de fato, tornaram-se cada vez mais) capazes de deduzir e de
inventar provas lógicas.





Atualmente, elas vão bem além. Podem aprender, e não só a partir daquilo
que nós lhes ensinamos. Esse aprendizado também se baseia no
rastreamento das informações que circulam nos meios digitais, uma
imensidão de dados interpretada por meio de algoritmos cada vez mais
complexos e opacos.





É por causa desse rastreamento que você, após escrever a um amigo
dizendo que pretende ir a Santiago, passa a receber mensagens
publicitárias sobre passagens de avião e hospedagem no Chile.





O avanço exponencial e combinatório do poder computacional difundido nos
mais variados tipos de objeto não amplia só a magnitude das informações
coletadas. Amplia também, e sobretudo, a capacidade dos algoritmos de
analisar e interpretar esses dados.





Sua geladeira saberá que você está sem leite. Sua máquina de lavar dirá
qual o momento de menor consumo de energia no sistema ao qual você está
ligado. A temperatura dos ambientes poderá ser regulada em função da
presença ou da ausência de pessoas em seu interior e à distância.





Já existem técnicas que permitem circunscrever a aplicação de
fertilizantes e agrotóxicos a necessidades específicas de cada lote da
unidade produtiva, por meio da interpretação de informações captadas por
drones e decodificadas por poderosos algoritmos. Baterias de celulares
serão recarregadas por sinais de rádio, via wi-fi.





INTERNET DA ENERGIA





Está emergindo uma internet da energia, que monitora o que os
domicílios, as fábricas, os escritórios e as fazendas produzem a partir
do Sol, dos ventos e da biomassa, distribuindo essa energia conforme as
necessidades do conjunto dos usuários.





Quem produzir mais energia do que consome tem crédito; quem produzir
menos paga. São as chamadas "redes inteligentes", que compatibilizam
noções que o século 20 sempre considerou antagônicas: descentralização e
eficiência.





As virtudes da internet das coisas, o fato de que cada um dos bilhões de
objetos de nosso cotidiano vai sendo dotado de um protocolo de internet
que o identifica e faz dele uma fonte de informação, a cognificação
generalizada do mundo material, isso também se estende às pessoas. É o
que especialistas batizaram de computação afetiva.





A Apple, no início de 2016, comprou a Emotient, empresa líder em
reconhecimento facial e que tem a ambição de detectar nossos estados
emocionais. É a internet das emoções. Você está triste? O que posso
fazer para que você melhore seu estado de ânimo?





Alguns dos estudiosos do tema sustentam que nós somos a última geração mais inteligente que as máquinas.





Essa espécie de triunfo da inteligência humana sobre ela mesma se apoia
naquilo que o historiador Yuval Noah Harari, em seu recém-publicado
"Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã" (Companhia das Letras), chama
de o grande desacoplamento: "A inteligência está se desacoplando da
consciência".





Até há pouco, apenas seres conscientes "podiam realizar tarefas que
exigissem alto grau de inteligência, como jogar xadrez, dirigir
automóveis, diagnosticar doenças ou identificar terroristas".





COGNIÇÃO SEM CORPO





Já temos, porém, e teremos cada vez mais, uma inteligência não apenas
sem corpo como também desprovida de emoções e sentido social e, no
entanto, capaz de realizar tarefas complexas com mais eficiência que os
humanos.





Gerd Leonhard, empreendedor e pesquisador, vai além no livro "Technology
vs. Humanity: The Coming Clash Between Man and Machine" (Fast Future;
tecnologia x humanidade: o embate vindouro entre homem e máquina),
publicado há alguns meses. Ele sustenta que a inteligência artificial
representa uma dissociação entre nossa capacidade de interferir no mundo
e as bases éticas dessa intervenção.





A maior ameaça ligada à inteligência artificial deriva do fato de que as
máquinas conseguem mimetizar nossos padrões de comportamento ético,
mas, por definição, não podem e jamais poderão se dotar de consciência
ética. A tecnologia é um meio para atingir fins que só podem estar fora
dela.





Se máquinas dotadas de inteligência artificial ampliam seu poder de
gestão e de intervenção na sociedade e nos indivíduos, há o risco de que
elas próprias definam as finalidades de suas ações.





Assim, nossa condição humana passaria a depender cada vez mais de
dispositivos com aptidão para despertar em nós sentimentos que nos
definem, como nossa felicidade, nosso sentido de pertencimento e até
nossa libido.





Leonhard propõe uma espécie de agência para proteger os seres humanos,
um Conselho Global de Ética Digital. Não se trata de esforço (vão) para
deter a expansão das tecnologias digitais, mas sim para garantir que
elas não comprometam aquilo que nos faz humanos.





Um exemplo? Nossa capacidade de desenvolver atividades úteis para os
outros, de fortalecer nossa interação e, portanto, a própria coesão
social. Em outras palavras, nosso trabalho.





DESEMPREGO





É justamente aí que entra a segunda grande ameaça representada pela inteligência artificial.





Os mercados de trabalho estão sofrendo mudanças que respondem, em grande
parte, pela espantosa reconcentração da riqueza nos países
desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos.





Até pouco tempo atrás, considerava-se que apenas trabalhos rotineiros e
de baixa qualificação seriam deslocados pelo avanço da computação. A
inteligência artificial, porém, derrubou essa barreira protetora.





Num escritório de advocacia, por exemplo, as máquinas são muito mais
eficientes na pesquisa de julgamentos passados e de artigos de lei que
podem ajudar na argumentação de um caso específico. Na medicina, a mesma
ideia se aplica à interpretação de chapas radiológicas. A preciosa
sabedoria dos taxistas não chega aos pés do que um dispositivo
inteligente é capaz de saber.





Claro que a revolução digital também cria empregos, sobretudo na
interação entre homens e máquinas. Mas ela o faz em volume menor que a
Revolução Industrial, que, há dois séculos, começou a substituir as
ocupações agrícolas.





Não é que o trabalho vá subitamente desaparecer, como atesta a situação
de quase pleno emprego nos Estados Unidos. O mercado de trabalho,
contudo, vai consolidando um padrão polarizado. A minoria dos detentores
de conhecimentos apropriados à era digital consegue ganhos de renda,
enquanto a grande massa dos assalariados aproxima-se da pobreza e,
sobretudo, da irrelevância.





A capacidade de aprendizagem das máquinas e a multiplicação dos robôs torna cada vez mais fácil substituir o trabalho humano.





Atualmente, já se pode robotizar quase inteiramente o trabalho nas
cadeias de fast-food, com as vantagens de maior padronização do produto,
melhor higiene e amortização do investimento em menos de dois anos.





Se alguém imagina que isso se limita aos países desenvolvidos, vale
lembrar que a China já é o maior mercado consumidor de robôs do mundo –e
vai se tornando também o principal produtor.





DESIGUALDADE





Carl Frey e Michael Osborne dirigem o Programa de Tecnologia e Emprego
da prestigiosa Oxford Martin School, no Reino Unido. Seus trabalhos
mostram que o ritmo dessas metamorfoses se acelera, que a lista de
setores por elas atingidos se amplia e que, diferentemente das inovações
típicas da era industrial, os benefícios das mudanças tecnológicas não
são, nem de longe, amplamente distribuídos.





Levou 119 anos para que o fuso industrial, uma vez inventado, se
tornasse padrão na tecelagem. A internet difundiu-se em menos de uma
década, e os objetos conectados em rede, que já eram 13 bilhões em 2013,
totalizarão nada menos que 500 bilhões em 2030.





As consequências sobre os empregos serão devastadoras, mostram Frey e
Osborne. Estão em risco 47% dos postos de trabalho nos EUA, 57% na média
dos países, desenvolvidos, da OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico), 69% na Índia, 77% na China e 85% na Etiópia.
A destruição tende a ser maior onde a estrutura ocupacional é mais
distante da economia do conhecimento.





Tais preocupações não se confinam ao universo dos que desconfiam da
tecnologia. Elas são hoje expressas por alguns dos mais destacados
protagonistas contemporâneos da cultura digital.





Em 2015, o físico Stephen Hawkin e os empresários Elon Musk (criador da
Tesla e um dos mais reconhecidos inovadores do mundo) e Bill Gates
publicaram documento com forte alerta sobre as ameaças trazidas pelo
avanço da inteligência artificial. A principal delas está na perspectiva
de drástica redução de postos de trabalho.





Em fevereiro deste ano, Gates sugeriu que os proprietários de robôs
deveriam pagar um imposto que serviria ao treinamento e à reinserção dos
trabalhadores deslocados pela inteligência artificial.





COMPARTILHAMENTO





A terceira grande ameaça representada pelo avanço da inteligência artificial refere-se à economia do compartilhamento.





Em 2010, Rachel Botsman e Roo Rogers publicaram um livro sobre a
ascensão do consumo colaborativo. Contavam, encantados, a história dos
jovens que tiveram a ideia de hospedar em casa pessoas que não
encontravam lugar em hotéis durante um congresso de design, em San
Francisco, em 2007.





A partir desse episódio, eles criaram um dispositivo digital que
resultou no Airbnb. A novidade não era, claro, o colchão de ar e o "bed
and breakfast" [cama e café da manhã], abreviados no nome daquela que se
tornou a principal central de reservas de hospedagem no mundo atual.





O fascinante na iniciativa era a possibilidade, aberta pela
conectividade generalizada, de que as pessoas colocassem à disposição
umas das outras bens e serviços dos quais não necessitavam e que
poderiam ser compartilhados.





Os resultados seriam a ampliação da renda de quem oferecia bens para
compartilhamento, os preços mais baratos do que os cobrados pelos
mercados convencionais e o potencial de economizar recursos materiais,
com benefícios crescentes para o meio ambiente.





O segredo estava em conseguir que indivíduos que não se conheciam
confiassem uns nos outros devido às referências digitalizadas. Daí o
título do livro de Botsman e Rogers: "O que É Meu É Seu" (Bookman). Como
a revolução digital permite a universalização da prática, o resultado
seria o aumento generalizado da prosperidade.





A marca distintiva da economia moderna, a propriedade, seria então
substituída pelo acesso. Por que possuir um carro se posso pegar carona?
Por que comprar um jornal se as notícias estão disponíveis de forma
aberta e gratuita na internet?





A era digital parecia prestes a realizar os mais nobres ideais de
cooperação social e compartilhamento que os movimentos operários
perseguem desde o século 19, sem o risco da centralização e da
burocracia que marcaram o socialismo real.





O consultor e futurologista Jeremy Rifkin chega a prever "o eclipse do
capitalismo" no livro "Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das
Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo" (M.
Books).





Para Rifkin, o capitalismo será superado não por um tipo de tomada do
Palácio de Inverno, ação pela qual os bolcheviques, em 1917, iniciaram a
formação da União Soviética, mas pelo triunfo da cooperação social
descentralizada, cujo caminho terá sido aberto pela economia digital.





Já Yochai Benkler publicou em 2011 o livro "The Penguin and the
Leviathan", com o subtítulo "How Cooperation Triumphs over
Self-Interest" (Crown Business; o pinguim e o leviatã: como a cooperação
supera o autointeresse).





A euforia emancipatória, contudo, teve vida curta. Em pouco tempo,
aquilo que aparecia como expressão virtuosa de cooperação direta e
descentralizada entre indivíduos autônomos revelou-se um dos mais
importantes epicentros da acumulação financeira.





Pior: a ambição de compartilhamento na hospedagem acabou por contribuir
para a degradação de cidades como Amsterdã, Barcelona, Berlim, Paris e
Nova York.





CONCENTRAÇÃO





Em vez de dividirem com os outros os espaços não usados, proprietários
venderam seus imóveis a companhias interessadas em explorar a locação.
Os locais figuravam como bens pessoais, mas pertenciam a empresas.





Por causa disso, várias cidades adotaram legislações para impedir a
desfiguração de suas áreas turísticas, como registra o norte-americano
Tom Slee em "What's Yours Is Mine: Against the Sharing Economy" (OR
Books; o que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento).





Não importa se alojamento, transporte, serviços de limpeza ou refeições
rápidas; Slee mostra que a economia do compartilhamento converte-se
sistematicamente em seu contrário. Ou seja, em lugar de distribuir
oportunidades, ela vem dando lugar a uma concentração crescente de renda
e de poder.





A quarta grande ameaça trazida pela inteligência artificial refere-se à
privacidade. Michael Sandel, professor de filosofia política em Harvard,
pergunta-se se não é perigoso estarmos nos aproximando de um cotidiano
em que a vigilância –de governos, empresas de que compramos, companhias
de seguro e empregadores– torna-se cada vez mais intrusiva.





ADEUS À PRIVACIDADE





As companhias de seguro já começam a propor a clientes que vistam
dispositivos capazes de acompanhar sua vida cotidiana (exercícios
físicos, consumo de álcool e tabaco, alimentação, sono). A partir dos
dados coletados pela indumentária, os valores da apólice seriam elevados
ou reduzidos. Segundo Sandel, a troca da privacidade pela conveniência
levanta questões éticas que deveriam pautar as decisões de empresas e
indivíduos. E se um empregador exigir que seu funcionário use o
dispositivo?





Mas o pior é que estamos o tempo todo fornecendo o que há de mais
precioso no mundo contemporâneo, ou seja, a informação, de forma
gratuita e inteiramente involuntária. Em uma fala no TED (conferência
sobre tecnologia, entretenimento e design), a jornalista especializada
em tecnologia Marta Peirano mostra que, sem que saibamos, nossos
celulares e todos os dispositivos conectados de que nos servimos estão
produzindo informações processadas por algoritmos cada vez mais
poderosos.





Essas informações não são só utilizadas por serviços de inteligência mas
também por empresas que nos oferecem pontos por compras e que conhecem
melhor nossos hábitos que nossos familiares. Diferentemente das empresas
telefônicas, a maneira como esses dados são usados não é objeto de
regulação estatal.





A privacidade, muito mais que um instrumento, é um valor. A ideia tão
frequente de que o cidadão honesto nada tem a temer com a transmissão à
rede dos dados de sua vida pessoal passa por cima justamente de um dos
mais importantes fundamentos éticos da vida contemporânea, que é o poder
do indivíduo sobre sua vida pessoal.





Não foi à toa que, em fevereiro, a Alemanha proibiu a comercialização da
boneca Cayla, que ouvia e dialogava com as crianças. Enquanto fazia
isso, ela armazenava as informações do diálogo –e o fazia sem o
conhecimento dos pais. A preocupação das autoridades alemãs não impediu
que o produto continuasse à venda nos EUA.





DISCUSSÃO ÉTICA





Em suma, nunca foram tão poderosos os meios técnicos para melhorar a
saúde humana, permitir que as pessoas levem adiante trabalhos
interessantes, favorecer a cooperação social e ampliar a soberania dos
indivíduos sobre suas vidas e suas decisões. Ao mesmo tempo, nunca foram
tão avassaladoras as ameaças que emergem da concentração de riqueza e
de poder ligada a esses meios técnicos.





É fundamental que se amplie a discussão pública (sobretudo a de natureza
ética) sobre esses temas, pois é daí que virão políticas e iniciativas
empresariais e cidadãs que poderão colocar a inteligência artificial a
serviço do florescimento da espécie humana.




RICARDO ABRAMOVAY, 63, professor sênior do Instituto de Energia e
Ambiente da USP, é autor de "Muito Além da Economia Verde" (Planeta
Sustentável).

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