Exclusivo! Wanderley Guilherme: o tipo de golpe que deram em 2016 é o que queriam ter feito em 1964
Abaixo, o vídeo com o discurso de Wanderley, e a sua transcrição,
ambos publicados aqui com exclusividade. Eu fiz pequenos ajustes no
texto, para adequar a linguagem oral à linguagem escrita.
Tocador de vídeo
00:00
19:29
Discurso de Wanderley Guilherme dos Santos, proferido na noite do
dia 24/04/2017, no auditório do IESP, em Botafogo, Rio de Janeiro.
O que me levou a escrever esse livro foi uma certa impressão inicial,
de que eu não estava conseguindo arrumar, na minha cabeça dois, fatos
que eu não podia negar.
Um deles era de que o processo de impedimento da presidente Dilma
Rousseff havia seguido, de acordo com aquilo que fica registrado nas
atas, os procedimentos formais, regulares, da Constituição.
Por outro lado, a percepção de que isso ocorrera não era suficiente
para me fazer aceitar que tudo se havia se passado de acordo exatamente
com o que tinha sido registrado.
Alguma coisa não correspondia a meu “feeling” político.
Durante algum tempo essa insatisfação, essa inquietude, ficou comigo,
até que me pareceu que eu havia encontrado uma forma de entender, e de
tornar compatível, do ponto-de-vista da lógica, do entendimento, o
formal do processo que havia transcorrido, com a ilegalidade substantiva
que havia sido cometida.
Fui, de certa maneira, pré-convencido, de que isto havia se passado,
de que havia um jogo de negações mútuas, entre o formal e o substantivo.
Com este pré-convencimento, comecei a reinterpretar este passado
recente, desde o processo de julgamento da Ação Penal 470, codinome
mensalão, do qual eu havia acompanhado, religiosamente, diariamente,
todas as discussões, apresentações, fotos, perorações, etc. Foram seis
meses de permanência diária na televisão. Acompanhei. Resolvi refletir,
de novo sobre o que eu havia visto. Então urdi uma narrativa que me
pareceu convincente, para mim pelo menos, de como daquele julgamento na
AP 470 chegou-se ao processo de impedimento, mais ou menos com as mesmas
características de tensão entre o formal e o substantivo.
A primeira coisa que ficou claro para mim era que, independentemente
da culpabilidade ou não, das pessoas que foram julgadas, condenadas, o
processo mediante o qual elas foram julgadas, foi um processo viciado.
Eu não tenho nenhum compromisso com a inocência de nenhum dos
culpados, condenados, e presos. Não tenho nenhum compromisso. Não quer
dizer que eu concorde. Eu simplesmente não tenho informação suficiente.
Não tenho expertise. Não tenho tarimba, habilidade suficiente, para
pegar todas aquelas pastas dos processos, e analisar de acordo com o
regime estritamente jurídico do código… não tenho essa capacidade. E,
portanto, não sei se há base jurídica para condená-los ou não; o que eu
sei é que, ainda que tenha havido, o modo pelo qual eles foram
condenados, foi fraudulento. Isso foi o ponto 1.
Ponto 2.
Isto foi o que também ocorreu, me parecia, no processo de impedimento de Dilma Rousseff.
Eu resolvi analisar se essa hipótese se justificava, se havia um
processo fraudulento de usar preceitos constitucionais, legais, para se
obter um desenlace que de outro modo não se teria obtido.
Para investigar essa hipótese, reanalisei o processo da ação penal
470, e verifiquei que lá foram lançadas as bases lógicas, ou
ideológicas, que permitiram não só aquelas condenações, como o processo,
e o impedimento posterior, de Dilma Rousseff.
A primeira violência política da AP 470 foi cometida pelo relator
ministro Joaquim Barbosa, ao declarar que a Constituição era o que o
Supremo diz que ela é. Isso consiste num sequestro do poder constituinte
do povo!
O que o Supremo faz é interpretar, adjudicar, e verificar, se os
fatos trazidos, estão conforme os preceitos existentes na Constituição.
Evidente que parece impossível deixar de haver uma interpretação dos
preceitos constitucionais, para saber se o caso se aproxima ou não.
Claro. Mas também é verdade, e este é o problema, que, ao fazer isto,
também é possível fazer com que uma coisa pareça outra. Eu não estou
negando a viabilidade, a permissibilidade, e até a autoridade e mandato,
dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em interpretarem preceitos
constitucionais. O que, sim, estou negando, é reporem, ou substituírem,
preceitos constitucionais óbvios, flagrantemente explícitos, por
interpretações em função da autoridade do STF. Isso é o que ele não pode
fazer, e, no entanto, fez, várias vezes.
E aí vem a segunda descoberta das bases que foram colocadas na AP
470: foi a sutil, escandalosa e violenta distinção entre a obrigação do
procurador de provar a culpa do acusado, da obrigação do acusado provar
que ele não tem culpa. Ele não é obrigado a provar que é inocente. Mas
ele era obrigado a provar que não tinha culpa.
Falando assim, parece que não é verdade, mas foi assim. O ministro
Ayres Brito, numa das sessões cruciais do julgamento, afirmou que ele
não podia provar que o senhor José Dirceu estava presente e era sabedor
de certos acertos, não sei de que ordem, mas que o senhor José Dirceu
não conseguia provar que não estava e não sabia.
Ora, é impossível alguém provar que não sabe alguma coisa!
Você pode provar que alguém não sabe o que diz que sabe. Isso se prova.
Mas você não consegue provar que alguém sabe aquilo que ele diz que
não sabe. E foi isso o que ministro Ayres Brito colocou como “frame”,
como moldura, dentro da qual o senhor José Dirceu tinha que defender a
sua inocência.
Ele não tinha que defender a sua inocência no sentido abstrato. Ele
tinha que defender a sua inocência provando a todos que ele não sabia o
que estava se passando em tal reunião, na qual ele não estava presente
segundo todas as indicações e segundo todos os testemunhos.
Isso é uma fraude!
E isso foi aceito por todos os ministros do Supremo.
E isso foi aceito por toda a audiência do país. Pelos meios de comunicação. Pelos órgãos de representação.
Essa violência, essa fraude, não foi denunciada!
Como é possível culpar alguém que não consegue provar que não sabia o que nós dissemos que ele sabe?
Aí vem a participação da ministra Rosa Weber.
A ministra Rosa Weber elaborou o seguinte juízo. Isso está gravado. Faz parte do voto da ministra.
“Quanto mais elevada é a posição do criminoso na organização
criminosa, menos pistas, ou provas, ou evidências teremos de sua
culpabilidade”.
Portanto, a inexistência de qualquer prova – como de fato não existiu
nenhuma prova – é evidência de que o senhor José Dirceu era o culpado.
Essa estrutura é a espinha dorsal da Ação Penal 470.
Isso foi aceito por todo o Supremo. Por toda a imprensa. Por toda a
inteligência brasileira liberal. Todos os liberais aceitaram.
E foi essa mesma permissão de interpretar a Constituição, de modo ad
hominem, de modo personalizado, e dizer o que ela evidentemente não diz,
e todos concordarem pelo silêncio, levou-me a entender e a descrever
como se passou o processo de impedimento de Dilma Rousseff.
Essa exposição que eu acabo de fazer, muito breve, eu imagino que ela esteja bem mais minuciosa no livro.
Mas meu compromisso com essa interpretação é total!
Eu não escrevi um livro de propaganda. Eu não fiz um livro partidário. Eu não fiz um livro de publicidade.
Eu fiz e escrevi um livro porque é esta a minha análise desse momento
importante do país, cujas consequências, eu acho, se estenderão para
fora do Brasil.
Hoje não se fazem mais golpes no mundo por via militar. Não é
necessário. Os golpes parlamentares, nesse estilo, tendem a se repetir.
Basta haver um consenso majoritário entre atores poderosos. Foi o que
nós tivemos.
Nós tivemos legislativo, executivo, judiciário, imprensa, órgãos como
OAB, etc, de acordo com o processo que estava sendo desenvolvido.
Esta coalizão obteve algo que vinha sendo tentado pelos conservadores
desde antes do golpe de 1964. Tentaram antes em 1954, e não
conseguiram, mas levaram Getúlio à morte. Não conseguiram em 1964. Os
militares tiveram que intervir.
O que foi que não conseguiram em 1964 e conseguiram agora? Expulsar,
de uma forma aparentemente legítima, as forças populares e seus
representantes dos circuitos de poder. Hoje as forças populares não
fazem mais parte do circuito de poder. E mais: isto é uma cláusula
pétrea desta coalizão que assumiu o poder. Tem divergências entre si,
mas há uma cláusula que os unifica definitivamente, que é não permitir
que as forças populares e as lideranças populares voltem a ter uma
participação relevante no circuito de poder.
Tentaram isso em 1953. Tentaram em 1954. Só conseguiram com os
militares, mas aí não por uma via aparentemente constitucional, por via
política formal. Isso conseguiram agora.
Meu compromisso é tanto com essa análise, que eu diria, para terminar, o seguinte.
O somatório de evidências, supostas evidências, delações premiadas, e
tudo mais, sem prejuízo daquilo tudo que, efetivamente, ocorre… Não
estou discutindo isso! estou discutindo outro ponto! Estou discutindo
algo que tenha acontecido que justificasse o impedimento de Dilma
Rousseff. Não foi nada disso. E tanto não foi que agora vou me lançar ao
mar. Se, semana que vem, o senhor Marcelo Odebrecht, ou qualquer outro,
viesse a público, ou fosse a juízo, e assinasse em juízo, de que tudo
que ele havia dito, agora, na delação, era mentira, não importaria,
porque isto que está acontecendo é a cobertura legal de uma fraude
essencial. Se houvesse um desmentido, não importaria. Imediatamente,
eles conseguiriam uma declaração do impedimento mental do senhor Marcelo
Odebrecht. Ou seja, aqueles que tiverem disposição de ler o livro,
leiam por favor com essa perspectiva.
Eu tenho um compromisso como intelectual, como professor, e como cidadão.
Não escrevi, insisto, um livro de propaganda. Eu escrevi um livro
acadêmico, de análise, que, entendo, mostra a falência lógica, a fraude
política, que desde a Ação Penal 470, a política brasileira vem
sofrendo.
Muito obrigado pela atenção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário