domingo, 16 de abril de 2017

Um outro fim do mundo é possível

Um outro fim do mundo é possível - 14/04/2017 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo



Um outro fim do mundo é possível



Vladimir Safatle







"O que temos no Brasil não é um negócio de cinco, dez anos. Estamos
falando de 30 anos atrás". Foi bom, Emílio Odebrecht, que você tenha
lembrado disso em sua delação premiada. Pois durante os últimos anos o
povo brasileiro teve que assistir ao espetáculo patético de corruptos
com ares de indignação cívica acusando corruptos, torcedores de
corruptos saindo às ruas para clamar contra a corrupção.





Tudo isto para chegar neste momento catártico e todos os lados da Nova
República serem expostos em suas relações incestuosas com o empresariado
nacional.





O ilibado e endeusado pela imprensa local Fernando Henrique Cardoso, o
defensor dos oprimidos Lula, o santo Alckmin, a guerrilheira Dilma, o
indignado Aloysio Nunes, seu amigo e presidente natural Serra, os
operadores do PT, os operadores do PSDB, os negociadores do PMDB, os
trânsfugas da ditadura do DEM: em suma, toda a fauna da casta política
brasileira no mesmo banco dos réus.





Os mesmos que ocupam os espaços na imprensa para pregar austeridade e
destruição dos direitos dos trabalhadores são os que pilharam os cofres
públicos de forma aberta e sem pudores. Os mesmos que exigem dos
trabalhadores que trabalhem 49 anos para se aposentar de forma integral
deram ao Brasil a honra de ter 24 de seus 81 senadores como alvo de
inquérito no STF.





Os mesmos que fecham escolas e deixam apodrecer universidades sentavam à
mesa fausta das negociações e levavam para casa milhões de reais.





Desde o aparecimento da primeira ponta do iceberg do esquema do
mensalão, isto nos idos de 2004, tudo estava claro para quem quisesse
ver.





O "maior esquema de corrupção da República" tinha sido simplesmente
reciclado pelos novos inquilinos do poder a partir, como disse o
patriarca Odebrecht, do business usual dos últimos 30 anos.





O mais cômico era ouvir aqueles que tentavam diferenciar os ocupantes do
poder por "intensidade" de corrupção: "Não, mas este corrompeu muito
mais". "Mas em relação a este são só ilações, é só tentativa de jogar
todo mundo na lama para relativizar tudo".





É, meus amigos, o Brasil conhece como ninguém o cinismo dos que sabem muito bem, mas mesmo assim agem como se não soubessem.





Diante disto, poucas foram as vozes que se perguntaram: mas como
chegamos até aqui? De onde veio a opacidade do Estado brasileiro e seu
desprezo pela presença da soberania popular, único esteio real contra a
corrupção dos entes privados? Será que há mesmo uma zona cinzenta de
amoralidade em toda forma de governo a respeito da qual não é possível
fazer nada?





No entanto, a maioria preferiu o jogo miserável de gritar "corrupto" enquanto abraçava seu corrupto do coração.





Melhor teria sido começar por se questionar sobre as relações
incestuosas entre governos e empresariado que fazem do Estado brasileiro
um Estado privado. Um Estado que serve para socializar as perdas do
empresariado, transformando suas dívidas em dívidas públicas, que serve
para rentabilizar o dinheiro ocioso de seus banqueiros enquanto joga a
polícia para cima de seus trabalhadores.





Agora, aparecem os oportunistas de plantão com os mesmos truques de
sempre. O nome da vez é o Sr. Doria. O mesmo que gostava de gritar para
seus desafetos: "Vá para Curitiba", enquanto devia R$ 90 mil de IPTU
para o município e cujas empresas receberam aportes de R$ 10,6 milhões
de vários governos nos últimos anos.





Não, certamente não se trata de mais um caso de relações incestuosas entre empresariado e governos.





Diante da exposição produzida pela chamada "delação do fim do mundo", só
gostaria de lembrar, como disse o filósofo francês Patrice Maniglier,
que "outro fim do mundo é possível".





Que isto sirva principalmente à esquerda brasileira. Eis o resultado do
seus "grandes operadores" e de seus "conciliadores que garantiriam uma
transformação social segura".





Melhor teria sido lembrar que à esquerda só há um caminho possível: a
mais austera virtude jacobina em relação ao bem comum e a recusa
completa em operar no interior desta "governabilidade".





Sim, que este mundo acabe o mais rápido possível. Toda a história da
Nova República só poderia acabar mesmo nesta confissão explícita de
fracasso nacional. Que este trauma nos sirva de lição

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