terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A violência usurpou a democracia - Carta Maior

A violência usurpou a democracia - Carta Maior

Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se
os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá
provenha.





Wanderley Guilherme dos Santos



Arquivo



Há algo de podre na política
brasileira. O discurso do ódio contaminou a cultura. A violência física
que assusta não é mais condenável do que a degradação pela palavra.
Introduzido durante os debates da Ação Penal 470, a televisão propagou
Brasil a fora o escárnio como argumento, a salivação como prova
irrefutável e a falta de compostura de alguns magistrados como aparte
retórico. Surpreendente a cada dia, durante todo o segundo semestre de
2013, os indiscutíveis mestres do STF, solidamente preparados,
transformavam-se em arengueiros pernósticos a vociferar vitupérios em
latim, em alemão e em inglês. À língua portuguesa reservaram-se
rebuscadas construções gramaticais com que degradavam de modo vil os
réus em julgamento. O valor intrínseco das evidências, muita vezes nulo,
era irrelevante para o altissonante juízo que os homens de capas
fúnebres proferiam.

Foi negado aos acusados a preservação última
da dignidade de pessoa, a mesma que foi concedida ao assassino de Tim
Lopes, Elias Maluco, ao ser descoberto: “prende, mas não esculacha”. Com
linguajar de estilo maneirista, as capas fúnebres do Supremo Tribunal
Federal esculacharam quanto quiseram os réus da Ação Penal 470 perante
uma audiência nacional, nela incluídos os “Elias Malucos” em liberdade. E
continuam, buscando proibir que sejam depositários da solidariedade de
cidadãos e cidadãs em pleno gozo de seus direitos civis e políticos. Não
podendo oficialmente matá-los ou bani-los, apostam impor-lhes o
ostracismo. É o discurso da vingança impotente movido a ódio.

O
estímulo ao linguajar desabrido e ao julgamento apressado e irrecorrível
encontrou na já virulenta blogosfera a ecologia apropriada para
reprodução cancerosa. Com a ferramenta do anonimato e a indulgência
prévia a qualquer desvario, o Caim em nós desabrochou com velocidade
sônica. A filosófica vontade de morte, a definição humana de um ser para
morte, revela-se menos conceitual e inocente na real inclinação para
matar. A internet veicula milhares de assassinatos virtuais e de
convocatórias à destruição. Sem não mais do que o subterfúgio de códigos
primários, quando muito, ações predatórias são incentivadas a qualquer
título. É total o descompasso entre avanço social e econômico do País e
as toscas bandeiras eventualmente desfraldadas. Na internet ou nas
manifestações selvagens até mesmo os partidos radicais perdem
importância. Não são eles que se aproveitam da turba para propaganda e
crítica ao governo, é a violência irracional que se serve deles como
escudo e defesa ideológica.

As antigas irrupções de
quebra-quebra, de confronto entre polícia e manifestantes, e até mesmo
episódios de grande magnitude, como a destruição das barcas em Niterói,
no século passado, não têm parentesco próximo com o vírus do ódio
contemporâneo. Aquelas eram manifestações tópicas, de enredo conhecido e
de duração previsível. Estas são projetos de vida e morte. Tempo mal
empregado o debate sobre a responsabilidade partidária dos confrontos
atuais. O novo é a capacidade de mobilização a-e-trans-partidária das
convocações subliminarmente homicidas.

A agressão pela palavra é
companheira da agressão à palavra, à linguagem. A amputação da língua
portuguesa tem sido o resultado não antecipado da linguagem de Caim. São
as frases, os verbos, as concordâncias as primeiras vítimas de todos os
blocos de suposta vanguarda. Essas agressões são antigas, mas da
blogosfera estão sendo trasladadas ao vocabulário jornalístico e da
televisão. Não só os textos de colunistas, repórteres e comentadores
trazem conteúdo hiperbolicamente crítico, mas o vocabulário que utilizam
é vulgar e de cada vez mais miserável. Não mais m..., pqp, fdap ou
c......o.
 
Agora,
intelectuais e jornalistas se esmeram  por extenso na vulgaridade da
frase e na crueza dos termos. É uma violência à palavra, ajudando a
violência pela palavra, destruindo importante fonte de transmissão de
cultura. Não se aprimora o aprendizado da língua portuguesa lendo os
jornais, as revistas, seus colunistas e editoriais rasteiros.
Tornaram-se tão decadentes quanto o ressentimento que difundem.  Nem se
discorda mais, se ofende. A violência está usurpando a democracia.


Sim,
há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem
que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha. Para
essa há remendos que asseguram a sobrevivência democrática. Em
putrefação está a cultura nacional pelo envenenamento de parte de suas
fontes de elite: a cultura jurídica, o debate político e a cultura da
informação. O péssimo é que, tal como os políticos costumam absolver
seus pares, é mínima a probabilidade de que juízes ou professores ou
jornalistas reconheçam a responsabilidade que lhes toca nessa podridão.
São castas auto-imunes. 

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