domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Não torturem os cachorrinhos, só torturem os negrinhos” - Portal Geledés

"Não torturem os cachorrinhos, só torturem os negrinhos” - Portal Geledés

por Mauro Santayanna 

O que é a
tortura? Como um ser humano pode conceber usar o corpo de outro ser
humano, que possui a mesma pele, a mesma boca, os mesmos dentes, os
mesmos ossos, os mesmos cabelos, os mesmos bilhões de neurônios, para
puni-lo com dor, desespero e medo?


A convenção das Nações
Unidas, de 1984, contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanas ou degradantes, define a tortura como “qualquer ato pelo qual
dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira
pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou
terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de
intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer
motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores
ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa
no exercício de funções públicas, ou por sua instigação”.


São
muitos os que buscam atribuir a tortura à natureza humana, como fazem
com a guerra e outros crimes. Mas existe um enorme abismo entre quem
luta e o torturador. O guerreiro luta por uma causa. Está sujeito a
morrer por uma fonte de água, a carcaça de uma presa recém-abatida, por
sua mulher e seus filhos.


O combatente atávico que existe
em cada um de nós sabe dos riscos que corre, em defesa de suas
circunstâncias, de suas ideias, de sua condição. Pode morrer ou ser
ferido em batalha.


O torturador se distingue pela
ausência de riscos, de coragem. O torturado sempre está desarmado, ou
amarrado e indefeso, frente a ele. O torturador brinca com o medo do
outro, porque, dentro de si mesmo, não consegue enfrentar e encarar o
próprio medo. Ele é covarde por natureza, é movido pelo mal e o sadismo,
e por sua fraca e abjeta personalidade. Ele não precisa de uma ideia,
de uma razão.


“A finalidade do terror é o terror. O
objetivo da opressão, a opressão. A finalidade da tortura é a tortura. O
objetivo da morte é a morte. A finalidade do poder é o poder. Você está
começando a me entender?”


explica, a um prisioneiro, um
personagem de George Orwell, no livro 1984. Os torturadores são, antes
de tudo, psicopatas. Dependendo do momento da história, irão torturar em
nome de Deus, de uma bandeira, um uniforme, uma ideologia, uma
religião. Use a roupa que usar, ocupe seja que cargo, o torturador não
passa de criminoso vulgar.


Uma sociedade que abomina
assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, não pode aceitar conviver,
em seu seio, com torturadores. Até mesmo porque o torturador quase
sempre é, também, assassino, ladrão, corrupto e estuprador.


A
diferença entre a tortura e a lei é a mesma que existe entre a barbárie
e o progresso. Aceitar a tortura como inerente à condição humana é o
mesmo que negar que um povo, um Estado, uma nação, a humanidade possam
evoluir.


Dostoiévski dizia que a melhor forma de medir o
grau de civilização de um país¬ era conhecer, por dentro, suas prisões.
Nesse aspecto, a situação no Brasil é vergonhosa. Não apenas com relação
às condições e superlotação de nossas cadeias, mas pela forma como
nossa sociedade convive com a tortura e o torturador.


O
brasileiro médio é falso, hipócrita e leniente com relação à tortura. As
mesmas pessoas que se revoltam com o vídeo feito por uma vizinha,
mostrando uma mulher espancando um cachorrinho na área de serviço, se
regozijam quando veem um menino ou menina de 7, 8 anos – morador de rua e
muitas vezes, já dominado pelo crack – ser agarrado pela orelha, e
tomar uma surra de policiais ou seguranças. Param, a caminho do
trabalho, para deleitar-se.


O agente do Estado, no
Brasil, formado em uma longa tradição autoritária, que vem desde os
capitães do mato, e dos diferentes hiatos ditatoriais de nossa história,
acha que tem direito de vida ou morte sobre o suspeito. Isso está
fartamente demonstrado não apenas nos milhares de casos de mortes por
“auto de resistência”, mas também pelo que ocorre com os presos, muitos
sem sequer terem passado por julgamento, no interior de nossas prisões. O
mesmo vale para o outro lado da moeda.


Da mesma forma
que um policial corrupto espanca, humilha e ameaça matar a mãe ou a
filha de um suspeito, para saber – em interesse próprio – onde está
escondido o produto de um assalto ou a droga recém-chegada, a violência
extrema tem sido praticada, também, pelas novas gerações de marginais,
que torturam e matam famílias, crianças e idosos, para tentar saber onde
está um punhado de reais. Como controlar essa corrente de estupidez?


Um
bom começo, do ponto de vista do Judiciário, seria perder o pudor de
usar a lei e condenar alguém pelo crime de tortura. Raramente alguém que
comete latrocínio com extrema violência tem a sua pena acrescida por
tortura. É como se condenar alguém por esse crime fosse proibido, ou ela
não existisse em nosso dicionário.


Nos portais e redes
sociais ela nunca é citada por quem a defende. Ninguém, referindo-se a
um suspeito, escreve ou afirma “tem de torturar esse cara”. Para que
fique tudo mais íntimo e corriqueiro, banalizado, usam-se expressões
como “tá precisando é de couro”, “se fosse meu filho, dava uma de criar
bicho”, “comida de preso é paulada”, “pendura que ele canta”, “tinha que
cortar na borracha” e outras do gênero.


A presidenta
Dilma Roussef lançou, no último 12 de dezembro, o Sistema Nacional de
Enfrentamento à Tortura, que prevê a instalação de um mecanismo autônomo
que, por meio de peritos, terá autorização prévia para entrar em
penitenciárias, instalações militares, delegacias, instituições de longa
permanência de idosos, instituições de tratamento de doenças psíquicas
ou similares, para constatar a existência de possíveis violações de
direitos humanos nesses locais.


Trata-se de importante
iniciativa, considerando-se que o Brasil é signatário da Convenção
Internacional Contra a Tortura desde 1989, e que, em 500 anos de
história, é a primeira vez que a Nação está encarando, de forma direta,
essa abominável questão.


Mas a verdadeira batalha não se
dará apenas com a fiscalização do que está ocorrendo nas prisões, que
poderia avançar com a instalação de delegacias de direitos humanos em
todo o país. Ela será travada nos corações e mentes da população
brasileira.


Não podemos nos considerar civilizados
enquanto milhares de brasileiros defenderem a execução ilegal e a
tortura como método de punição e investigação. Não podemos nos
considerar civilizados enquanto juízes estabelecerem jurisprudência
atribuindo à vítima de tortura o ônus de provar que foi torturada. Esse
paradigma, estabelecido na ideologia escravocrata e repressora de parte
considerável de nossa sociedade, só poderá ser alterado a partir do
ensino, em todas as escolas, desde o primeiro grau, dos direitos e
deveres consubstanciados na Constituição brasileira, atendo-se
estritamente ao seu conteúdo, para não dar à direita fascista motivo
para combater a iniciativa.


Só quando ensinarmos nossos
filhos e netos que o mero ato de um policial espancar um manifestante,
em uma situação de protesto – ou manifestantes espancarem um policial
desarmado – é ilegal; que extrair dor de outro homem, mulher, criança,
indefeso, humilhando-os, transformando-os, pelo medo, em animais
-irracionais, que gritam, sangram e choram, segundo a vontade de seu
torturador, é crime abjeto e condenável, poderemos começar a mudar, de
fato, a mentalidade a propósito da tortura, sua imagem e paradigmas, em
nosso país.


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