domingo, 16 de fevereiro de 2014

'O empregado tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?' — CartaCapital

'O empregado tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?' — CartaCapital

Se você, a exemplo dos professores que debocharam de
passageiro "mal-vestido" no aeroporto, já se fez esta pergunta,
parabéns: você não aprendeu nada





por Matheus Pichonelli







publicado
07/02/2014 13:20,



última modificação
15/02/2014 09:42
























Reprodução




Preconceito

Professora universitária faz galhofa
diante do rapaz que foi ao aeroporto sem roupa de gala. É o símbolo do
país que vê a educação como fator de distinção, e não de transformação
O condômino é, antes de tudo, um especialista no
tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da
seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter
fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha
contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador.
Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você
entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os
períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante
de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma
goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio
será a prova de que a humanidade não deu certo.


Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e
resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio,
tinha gente 'revoltada' porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha
muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos
condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do
prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos
proprietários”.


A cena parecia saída do filme O Som ao Redor, de Kleber
Mendonça Filho, no qual a demissão de um veterano porteiro é discutida
em uma espécie de "paredão" organizado pelos condôminos. No caso do
prédio do meu amigo, a moça havia se transformado na peça central
de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia
margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu
emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por
apartamento.



Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa
tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e
ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim
no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus
arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a
figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência
humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.


Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que
lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas
fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo
da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado
muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual
de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios
aos filhos campeões, há uma mensagem quase cifrada: “você
conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado
vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em
paz”.


Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor
é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas
linhas de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.


O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no
Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente
a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive
se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma
bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente
intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica
ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que
existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico
que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto
psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.


Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade
sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino
superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo
de distinção.


Por isso comemora-se também ao sair da faculdade. Já vi, por exemplo,
coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida
em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida.
Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em
tempo: a formatura era de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer
levantou a possibilidade de que a batalha só seria vencida quando
deixássemos de ser um país em que ter dente era (e é), por si, um
privilégio.


Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma
lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar.
Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos
fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as
unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a
última ponta o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou
pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom
com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me
entregou mandioca? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e
lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de
restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma
prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o
país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas
posições.


Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda
uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se
incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom,
“invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a
universidade. Ou os aeroportos.


Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa
falência do que o episódio da professora que postou fotos de um
“popular” no saguão do aeroporto e lançou no Facebook: “Viramos uma
rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou
era, mais do que o ato de se deslocar ao ar de um local a outro: é
lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar
para andar de avião).


Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços
cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso
senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de
nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria
ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios
de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do
privilégio e da exclusão.

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