quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Barbosa sentiu o golpe dos brasileiros antenados na Ação Penal 470 | GGN

Barbosa sentiu o golpe dos brasileiros antenados na Ação Penal 470 | GGN

Enviado por Jns
De O Cafezinho
O escritor argentino Ricardo Piglia, num
de seus ensaios, propõe uma tese segundo a qual um conto oferece sempre
duas histórias. Uma delas acontece num descampado aberto, à vista do
leitor, e o talento do artista consiste em esconder a segunda história
nos interstícios da primeira.


Agora sabemos que não são apenas
escritores que sabem ocultar uma história secreta nas entrelinhas de uma
narrativa clássica. O ministro Luís Roberto Barroso nos mostrou que um
jurista astuto (no bom sentido) também possui esse dom.
Esta é a razão do ridículo destempero de
Joaquim Barbosa. Esta é a razão pela qual Barbosa interrompeu o voto do
colega várias vezes e fez questão de, ao final deste, vociferar um
discurso raivoso e mal educado.
Barbosa sentiu o golpe.
Houve um momento em que Barbosa
praticamente se auto-acusou: “o que fizemos não é arbitrariedade”. Ora, o
termo não fora usado por Barroso. Barbosa, portanto, não berrava apenas
contra seu colega. Havia um oponente imaginário assombrando Barbosa,
que não se encontrava em plenário, mas ele sentiu sua presença enquanto
ouvia Barroso ler, tranquilamente, seu voto.
O oponente imaginário são os milhares de
brasileiros que vem se aprofundando cada vez mais nos autos da Ação
Penal 470, acompanhando os debates do Supremo Tribunal Federal, ajudando
alguns réus a pagar suas multas, dando entrevistas bem duras em que
denunciam os erros do julgamento, e constatando, perplexos, que houve,
sim, uma série de erros processuais e arbitrariedades.
Barroso contou duas histórias. Uma
delas, no primeiro plano, era seu voto. Um voto tranquilo e técnico. Só
que nada na Ação Penal 470 foi tranquilo e técnico, e aí entra a
história subterrânea, por trás do cavalheirismo modesto de Barroso.
E aí se explica a fúria de Barbosa.
A história secreta contada por Barroso,
com uma sutileza digna de um escritor de suspense, de um Edgar Allan
Poe, com uma ironia só encontrada nos romances de Faulkner ou Guimarães
Rosa, é a denúncia da farsa.
Aos poucos, essa história subterrânea virá à tôna. Alguns observadores mais atentos já a pressentiram há tempos.
O novo ministro, antes mesmo de
ingressar no STF, entendeu que há um muro de ódio e violência à sua
frente, construído ao longo de oito anos, cujos tijolos foram cimentados
com preconceito político, chantagens, vaidade e uma truculência
midiática que só encontra paralelo nas grandes crises dos anos 50 e 60,
que culminaram com o golpe de Estado.
Sabe o ministro que não é ele, sozinho,
que poderá desconstruir esse muro. Em entrevista a um jornal, o próprio
admitiu que estava assustado com a violência da qual já estava sendo
vítima: o médico de sua mulher, sem ser perguntado, disse a ela que não
tinha gostado do voto de seu marido, e suas filhas vinham sendo
questionadas na escola por colegas e professores.
O Brasil vive um tipo de fascismo
midiático cuja maior vítima (e algoz) é a classe média e os estamentos
profissionais que ela ocupa.
É a ditadura dos saguões dos aeroportos, das salas de espera em consultórios médicos, dos shows da Marisa Monte.
Nos últimos meses, eu tenho feito alguns
novos amigos, que tem me dado um testemunho parecido. Todos reclamam da
solidão. A mãe rodeada de filhos “coxinhas”. O pai que é assediado, às
vezes quase agredido, pelas filhas reacionárias. A executiva na empresa
pública isolada entre tucanos raivosos. Alguns, mais velhos, encaram a
situação com bom humor. Outros, mais jovens, vivem atordoados com as
pancadas diárias que levam de seus próximos.
No entanto, o PT é o partido preferido
dos brasileiros, ganha eleições presidenciais, aumenta presença no
congresso e pode ganhar novamente a presidência este ano, até mesmo no
primeiro turno.
Por que esta solidão se tanta gente vota no partido?
Claro que voltamos à questão da mídia,
que influencia particularmente as camadas médias da sociedade, à
esquerda e à direita. A maioria da classe média tradicional, hoje,
independente da ideologia que professa, odeia o PT, idolatra Joaquim
Barbosa, e lê os livros sugeridos nos cadernos de cultura tradicionais.
Eu conheço um bocado de artistas. Hoje
são quase todos de direita, embora a maior parte se considere de
esquerda. Todos odeiam Dirceu, sem nem saber porque. E me olham com
profunda perplexidade quando eu tento argumentar. Como assim, parecem me
perguntar, com olhos onde vemos rapidamente nascer um ódio atávico,
irracional, como assim você não odeia Dirceu?
Eu tento conversar, com a mesma calma de Barroso, mas não adianta muito. Eles reagem com agressividade e intolerância.
Pessoas em geral pacatas se transformam
em figuras raivosas e vingativas. O humanismo, que tanto fingem apreciar
nos europeus, mandam às favas ao desejar que os réus petistas apodreçam
no pior presídio do Brasil.
Eu mesmo costumo usar os mesmos termos
de Barroso. “Respeito sua opinião”, eu digo. Às vezes até procuro
elogiar o interlocutor, numa tentativa ingênua e canhestra de quebrar a
casca de ódio que impede qualquer diálogo. Não adianta. Qual um bando de
Barbosas, eles respondem, quase sempre, com grosserias e sarcasmos.
Quantas vezes não vivi a mesma situação
de Barroso? Às vezes, inclusive, aceitei teses que não acreditava,
violentei-me, num esforço desesperado para transmitir uma pequena
divergência, uma singela ideia que foge ao script da mentalidade de um
interlocutor cheio de certezas.
Entretanto, a serenidade estóica e
elegante de Barroso significou uma grande vitória para nós, os
solitários, os que arrostamos as truculências diárias da mídia e de seu
imenso, quase infinito, exército de zumbis.
Porque encontramos um igual.
Encontramos alguém que sofre, que tenta
expor uma ideia diferente, e recebe de volta uma saraivada de golpes de
quem não aceita ser contestado.
Não confundamos, contudo, elegância com
covardia. Não se pode exigir a um homem que derrube sozinho uma muralha
desse calibre. Esse trabalho não é de Barroso. Será um esforço coletivo,
que já estamos empreendedo. Barroso encontrará forças em nossas ideias.
Mesmo que ele tenha de fazer algum recuo estratégico, como aliás já fez, ao condenar Genoíno, será para avançar em seguida.
Mas a função de um juiz do STF não é
defender uma classe. Não é defender a rapaziada que frequenta o show da
Marisa Monte e lê os editoriais de Merval Pereira. Não é se tornar
celebridade ou “justiceiro”. A função de um juiz é ser justo e defender
tanto as razões do Estado acusador quanto os direitos dos réus.
Quando Getúlio deu um tiro em si mesmo,
ele deixou um recado, no qual há referências algo misteriosas a “forças”
que se desencadearam sobre ele.
Como que antevendo o que continuaríamos a
enfrentar, durante muito tempo, o velhinho ainda tentou, em sua
dolorosa despedida, nos consolar:
“Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.”
E cá estamos, Getúlio, diante das mesmas
forças obscuras. Diante da mesma truculência, das mesmas
arbitrariedades, que dessa vez encontraram voz na figura, trágica
ironia, de um negro. Do primeiro negro que nós, o povo, nomeamos para o
STF, mas que preferiu se unir aos poderosos de sempre, aos donos do
dinheiro, aos barões da mídia, à turma do saguão do aeroporto…
É positivamente curioso como os
ministros da mídia demonstram auto-confiança, arrogância, desenvoltura.
Gilmar Mendes, Barbosa, Marco Aurélio Mello, dão entrevistas como se
fizessem parte de uma raça superior. São campeões de um STF triunfante,
que prendeu os “mensaleiros”.
Enquanto isso, os outros ministros agem
com humildade, discrição, prudência. Barroso lê seu voto com voz quase
trêmula, e pede reiteradas desculpas por cada mínima divergência. Nunca
se ouviu um ministro pedir tantas vênias como Barroso. Nunca se viu um
juiz fazer tantos elogios àquele mesmo que o destrata sem nenhuma
preocupação quanto à etiqueta de um tribunal.
Mas o que Barroso pode fazer? Não
faríamos o mesmo? A situação de Barroso é quase a de um sertanejo
humilde, argumentando em voz baixa diante de seu patrão.
Sintomático que Luiz Fux, que aderiu
também à Casa Grande, tenha citado Lampião para designar a “quadrilha
dos mensaleiros”. O mundo dá tantas voltas, e retorna ao mesmo lugar.
Virgulino Ferreira da Silva, o terror do Nordeste, o maior dos
facínoras, quem diria, seria comparado a José Dirceu! É o tipo de
comparação que não dá para ouvir sem darmos um sorriso triste e
malicioso.
Não foi Virgulino igualmente o maior
herói do sertão? Não foi ele o maior símbolo das injustiças e
arbitrariedades que se abatiam, dia e noite, sobre um povo sofrido e
miserável?
Evidentemente, não existe comparação
mais idiota. Dirceu é um homem de paz, que acreditou na democracia e na
política. Lampião foi um bandido que desistiu de qualquer solução
política ou pacífica para seus problemas.
Mas também Fux, sem disso ter
consciência, trouxe à baila uma história subterrânea, soterrada sob sua
postura covarde de um juiz submetido aos barões de sempre: Lampião
provou ao Brasil que não existe opressão sem resistência, mesmo que na
forma de banditismo. Esta é a lei mais antiga da humanidade. A
resistência e o heroísmo nascem da opressão e da arbitrariedade, como um
filho nasce da mãe e do pai.
A campanha de solidariedade aos réus
petistas foi a prova disso. Mas não vai parar aí. Ao chancelar uma farsa
odiosa, arbitrária, truculenta e, sobretudo, mentirosa, o STF produziu
milhares de Virgulinos. Só que não são Virgulinos por serem bandidos ou
violentos. São Virgulinos exatamente pela razão oposta: a coragem de
lutar de maneira pacífica e democrática.
É a coragem, sempre, a grande lição que o
mais humilde dos cidadãos dá aos poderosos. É a coragem que faz alguém
se insurgir contra a opinião do ambiente de trabalho, da família, do
condomínio, dos saguões dos aeroportos, e assumir uma posição política
independente, inspirada unicamente em sua consciência.
É a coragem, enfim, que faz os olhos de
Barroso irradiarem um brilho de confiante serenidade. Sua voz pode
tremer, mas não por medo. Treme antes pelo receio de escorregar um
milímetro no fio da navalha por onde caminha, entre o desejo de falar
duras verdades a um tratante e a determinação de manter uma elegância
absoluta.
Barroso sequer consegue usar o pronome
“seu” ao se referir a Barbosa, com medo de cometer um deslize verbal. Se
Barbosa fosse uma figura serena, amiga, Barroso não teria esse
escrúpulo. Tratando-se de um oponente sem caráter, sem moderação, e ao
mesmo tempo tão incensado e blindado pela mídia, Barroso tem de tomar um
cuidado máximo. Tem de tratá-lo com respeito até mesmo exagerado.
Barroso sabe que Barbosa é vítima de megalomania e arrogância
messiânica, que sofre de uma espécie de loucura, uma loucura
perigosíssima, porque protegida pelos canhões da imprensa corporativa.
Ao contestar tão ofensivamente o teor do
voto de Barroso, ao acusá-lo, de maneira tão vil, Barbosa disparou um
tiro no próprio pé. Ganhará, ainda, um bocado de palmas dos saguões
aeroportuários, mas haverá mais gente erguendo a sombrancelha,
desconfiada de tanta fanfarronice e falta de modos.
Barroso deixou que Barbosa morresse como um peixe, pela boca.
Foi a vitória da serenidade sobre o destempero, da delicadeza sobre chauvinismo, do respeito à divergência sobre a intolerância.

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