domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os 30 anos de ódio ao MST nas páginas de Veja - Carta Maior

Os 30 anos de ódio ao MST nas páginas de Veja - Carta Maior

O que os ataques e silêncios da revista sobre o maior
movimento social brasileiro revelam sobre a história recente da política
brasileira





Najla Passos



reprodução




O ódio da mídia ao MST
acompanha os 30 anos do movimento, desde a sua fundação, em janeiro de
1984. Mas o padrão de manipulação usado para tentar fraudar a imagem do
movimento muda bastante, acompanhando a conjuntura e tentando tirar
proveito dela. Prova é a forma com que a maior revista do país, a Veja,
teceu a trajetória do MST em suas páginas: primeiro com a tentativa de
cooptação, depois com total invisibilidade, até a campanha permanente de
criminalização, que oscilou da associação com o perigo comunista,
herdada da ditadura, à acusação de terrorismo, no período pós 11 de
setembro. Nos últimos anos, uma nova condenação ao ostracismo,
acompanhada pelo conjunto da mídia, garantiu a retirada do tema reforma
agrária da pauta nacional.

O MST foi fundado no bojo do mesmo
desejo de democracia que levou às ruas a Campanha das Diretas Já, como
um movimento pacífico de luta pela terra. Mas o esforço dos companheiros
que tentavam retomar a pauta da reforma agrária, interrompida com o
deposição de João Goulart em 1964, não mereceu nem mesmo uma linha nas
páginas da revista. Isso só viria a acontecer em junho do ano seguinte,
quando José Sarney já havia herdado de Tancredo Neves o posto de
primeiro presidente civil pós-ditadura, e acabava de lançar um pacote
para viabilizar uma espécie de reforma agrária que jamais sairia do
papel.

Assumindo para si um papel nunca a ela delegado de
mediadora do “pacto social” que Sarney propunha ao Brasil polarizado,
Veja defendeu o pacote na reportagem de capa “Reforma Agrária – os
fazendeiros se armam”, de 19 de junho de 1985. O MST, que não apoiava a
proposta, aparecia como um movimento localizado apenas em Santa
Catarina, sem respaldo suficiente para se tornar um grande interlocutor
do governo em relação ao tema.

O movimento voltou a ser capa da
revista quando o país já se deparava com as falsas promessas de
desenvolvimento do neoliberalismo, defendido com veemência pela revista.
O alagoano Fernando Collor de Mello, lançado nas famosas páginas
amarelas como o Caçador de Marajás,  havia ganhado a primeira eleição
presidencial pós-ditadura, prometendo abertura às importações e
diminuição das funções do Estado, em contraposição ao sindicalista Luiz
Inácio da Silva, que defendia pautas mais sociais, como a bandeira da
reforma agrária do MST.

No dia 15 de agosto de 1990, a Veja
publicou sua primeira reportagem atacando frontalmente o MST. Na foto de
capa, um único sem-terra, “armado” com sua foice, aterrorizava um
exército de policiais armados com escudos, cassetetes e revólveres.
Inaugurou ali a utilização do clássico termo “baderna”, com que até hoje
descreve as ações do movimento.  Depois disso, a revista se calou
acerca do MST, que continuou crescendo, a ponto de se transformar no
maior movimento social brasileiro.



Ostracismo midiático
Em
1994, na corrida presidencial que contrapunha o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso e novamente o operário Lula, o MST começou a ganhar
espaço em outros órgãos de imprensa. A Folha de S. Paulo, em 1994,
publicou 40 matérias sobre o MST. Em 1995, já com Fernando Henrique na
presidência, foram 450. A Veja, porém, continuou firme no seu propósito
de condenar o movimento ao ostracismo e, assim, manter longe da agenda
nacional a pauta da reforma agrária. Duas grandes tragédias, porém,
lançaram nova luz sobre o movimento: os massacres de Corumbiara e de
Eldorado dos Carajás.

Em 9 de agosto de 1995, 355 sem-terra
foram presos e torturados, 125 ficaram gravemente feridos e nove
morreram, incluindo a pequena Vanessa, de 6 anos. Eles não eram ligados
ao MST, mas a imprensa não fez esta distinção ao tratar do caso. O
assunto ganhou repercussão internacional. Ainda assim, Veja resistiu o
quando pode. Só foi noticiar o massacre quase um mês depois, na edição
de 6 de setembro. A matéria “Executados, torturados e humilhados”
apresentava o tom de indignação que tomava o mundo e não fazia alusões
ao MST.

Em 17 de abril de 1996, 21 sem-terra ligados ao MST
foram brutalmente executados e 51 ficaram feridos, no Massacre de
Eldorado dos Carajás. O crime causou comoção mundial e a Veja não pode
mais ignorar o movimento. Na edição de 24 de abril, a revista era pura
indignação. A própria capa já era uma denúncia contra a atrocidade, com a
exibição de um trabalhador rural assassinado com um tiro na nuca.

Na
reportagem, Veja trouxe pela primeira vez a menção a um Brasil arcaico e
um outro moderno, a partir de uma analogia usada dias antes pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso. Segundo a revista, “como um
sociólogo debruçado sobre personagens de uma tese acadêmica, e não
pessoas de carne e osso, com sonhos de um futuro melhor, filhos pra
criar e uma vida para tocar, Fernando Henrique classificou os sem-terra e
a PM de presentantes do ‘Brasil arcaico’, em oposição ao ‘moderno’, do
qual se considera representante, talvez condutor”. Mas se a matéria
principal tecia uma das raras críticas da publicação ao presidente e se
mostrava solidária aos sem-terra, o box intitulado “O Sindicato-partido
do MST” fazia o oposto, ao afirmar que o movimento era armado e tinha
tradição de enfrentar a polícia.

Alvo prioritário
Após
1996, durante o império do pensamento único, a Veja transformou o MST
em seu alvo prioritário. De acordo com a pesquisadora Carla Silva, no
livro “Veja: o indispensável partido neoliberal”, as investidas contra o
movimento superaram até mesmo os ataques ao PT e a igreja combativa.
“Neste caso [do MST] não há uma tentativa de cooptação ou de diálogo,
como se vê em relação ao PT, a quem a revista busca em vários momentos
apontar linhas de ação. Também não há uma visão despolitizada como a
Renovação Carismática colocada em oposição à CNBB. No caso do MST, a
crítica é permanente”, registrou ela.

Na edição de 16 de abril
de 1997, “A marcha dos radicais – quem são e o que querem os sem-terra”
apresentava o movimento como o retrato mais perfeito do Brasil arcaico
de que falava FHC em 1995 – e que até a própria Veja condenara. Os
sem-terra eram apresentados como um povo inculto e atrasado, tal como os
beatos seguidores de Antônio Conselheiro que desafiaram a República a
se lançar na Guerra de Canudos. “Representantes de um Brasil Arcaicao,
descalços, dentes ruins, bicho-de-pé e pouco estudo, os sem-terra
invadem propriedades, desrespeitam a lei e enfrentam a polícia. Já
morreram e mataram nesses conflitos. Parecem um pouco os fanáticos do
beato Antônio Conselheiro”, pregava a revista.


Em
outro momento, a reportagem acabava por revelar o porquê do seu ódio ao
MST, considerado por ela a única oposição, de fato, ao governo FHC,
após o que classificava de “desmoronamento da oposição sindical, da
oposição de esquerda (PT e Lula) e também da de direita (o PPB de
Maluf)”. E, em um terceiro momento, justificava porque precisava
inverter a imagem do movimento perante a população: pesquisa do Ibope
realizada no período mostrava que 83% dos brasileiros apoiavam a reforma
agrária e 40% eram favoráveis, até mesmo à invasão de fazendas.

O MST e o “perigo vermelho”
As
investidas da Veja contra o MST se tornaram mais agressivas nos anos
seguintes. Na edição de 3 de junho de 1998, às vésperas da eleição que
reconduziu FHC à presidência, a revista apresentava aos seus leitores um
MST absolutamente aterrorizante. A foto de capa trazia João Pedro
Stédile, umas das principais lideranças do movimento, com feições
sérias, em tons vermelhos, a própria encarnação do demônio. O texto “A
esquerda com raiva – inspirados por ideais zapatistas, leninistas,
maoístas e cristãos, os líderes do MST pregam a implosão da democracia
burguesa e sonham com um Brasil socialista” resgatava o pânico do perigo
vermelho inculcado nos brasileiros pela ditadura.

Em 10 de maio
de 2000, mais um exemplo: a matéria de capa “A tática da baderna – O
MST usa o pretexto da reforma agrária para pregar a revolução
socialista” voltava a semear o pânico. O texto da reportagem seguia a
mesma linha: “Numa palavra, o MST não quer mais terra. O movimento quer
toda a terra, quer tomar o poder no país por meio da revolução e, feito
isso, implantar por aqui um socialismo tardio (...)”. Num box com a
suíte “Meu nome é Stédile, João Stédile”, uma fotomontagem apresentava o
líder sem-terra vestido de smoking e portando pistola automática, no
melhor estilo James Bond, o espião da série 007 que tinha licença da
rainha da Inglaterra para matar.

O MST terrorista

Depois
dos atentados de 11 de setembro de 2011, com o mundo estarrecido frente
ao perigo terrorista, a Veja se apropriou do pânico generalizado para,
mais uma vez, inovar no tratamento destinado ao MST.  A etapa da
tentativa de construção desse “MST terrorista” propagado pela revista
começou com a publicação, em 18 de junho de 2003, quando Lula já havia
assumido a presidência, da reportagem de capa em analogia direta à capa
de 1998 que trazia Stédile travestido de diabo.

Nesta, o eleito
para compor o quadro foi o então líder do movimento, José Rainha,
estampado em foto de capa com a manchete “A esquerda delirante – Para
salvar os miseráveis dos ‘desconfortos do capitalismo, o líder sem-terra
José Rainha ameaça criar no interior de São Paulo um acampamento
gigantesco como o de Canudos, instalado há um século por Antônio
conselheiro no sertão da Bahia”,

Na reportagem, os mesmos
estereótipos martelados na década anterior: anacronismo, atraso,
radicalismo e táticas agressivas foram algumas das expressões
reutilizadas. Também veio da década anterior a associação do líder
sem-terra com o beato Antônio Conselheiro, tratado pela história oficial
como o fanático que não aceitava os tempos modernos da república.
Seguidores, pregação, beato, promessas e glorificação ideológica
ajudavam a compor o texto que não poupou nem mesmo Euclides da Cunha,
autor do clássico Os Sertões, que fala sobre Canudos, a ser citado na
matéria para respaldar os absurdos propagados pela revista.

A
partir daí, as matérias negativas contra o MST se tornaram pauta
obrigatória em todas as edições da revista. Exemplo claro é o editorial
“Veja avisou”, da edição de 2 de julho de 2003, que recuperava todas as
críticas feitas pela revista ao movimento ao longo da década.  Em 30 de
julho, a matéria “Stédile declara guerra” reforçava a associação do
movimento à baderna e à violência, acusando-o de misturar os “excluídos
do campo e da cidade, o complexo de culpa da classe média e a falta de
firmeza das autoridades com as ilegalidades praticadas”. Foi nesta toada
que a Veja concluiu o primeiro ano do mandado do ex-presidente Lula.

No
início de 2004, a bancada ruralista, munida das páginas de Veja,
começou a colher assinaturas para a instalação da CPI da Terra. A
revista continuou firme na campanha, cada vez mais ácida. Na edição de
14 de abril daquele ano, a reportagem “O abril sem lei do MST” atestava a
inoperância do governo Lula para conter as “ações criminosas” do
movimento: a luta pela reforma agrária. Na semana seguinte, a matéria
“Como na guerra” narrava a historia de um fazendeiro obrigado a fazer
barricadas para se proteger dos “beligerantes” sem-terra.

As “madraçais” do MST
No
final de setembro, o deputado João Batista usou a Tribuna da Câmara
para exigir que o MEC fiscalizasse as escolas mantidas com dinheiro
público nos assentamentos. Com base em matéria publicada pela Veja, ele
acusava as escolas de formar futuros revolucionários, extirpando “o
raciocínio lógico e o senso crítico” dos futuros cidadãos brasileiros. A
base da denúncia que gerou calorosos debates foi a matéria “Madraçais
do MST”, publicada na edição de 8 de setembro de 2004. “Assim como os
internatos muçulmanos, as escolas dos Sem-Terra ensinam o ódio e
instigam a revolução. Os infiéis, no caso, somos todos nós”, bradava a
revista.

Em 2005, uma nova e ousada tentativa de criminalizar o
MST. Na matéria “Ligações perigosas – escuta mostra que o MST orientou a
facção criminosa PCC a organizar uma manifestação”, a revista acusava,
sem nenhuma base palpável, o maior movimento social de brasileiro de ter
relações sólidas com o movimento criminoso que, à época, assustava o
país. As ligações jamais foram comprovadas, mas a revista nunca
desmentiu as acusações.

No final do ano, a tal CPI da Terra
apresentou seu relatório final propondo a transformação de invasão de
terra em prática terrorista. Veja apelou de novo. Na reportagem “O
terror contra o saber – braço feminino do MST destrói laboratório com
mais de uma década de pesquisas”. A revista, claro, omitiu que o tal
laboratório, da empresa Aracruz, realizava pesquisas com sementes
transgênicas que causavam imensos prejuízos à agricultura familiar e
agroecológica da região.

Nesta época, o desgaste sofrido pela
imagem do MST já era claramente perceptível. Uma nova pesquisa do Ibope
encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em 2006,
mostrou o efeito de uma década de propaganda de Veja contra o MST: 56%
dos brasileiros achavam que as ações do MST causavam mais resultados
negativos para a reforma agrária do que positivos e 53% acreditavam que o
governo deveria usar a polícia para conter as invasões.

Ataques e omissões recentes
Em
2009, a Veja conseguiu, enfim, respaldar a instalação de mais uma CPI
para investigar o MST, a partir da reportagem de capa “Por dentro do
cofre do MST”, na qual a revista acusava o governo federal e entidades
internacionais de financiar as atividades classificadas como criminosas
do movimento. Era a terceira, criada em cinco anos, para investigar e
desgastar o MST. Para o governo Lula, ficava cada vez mais temerário
apoiar o movimento já associado ao terrorismo, mesmo que, contra eles,
não se provasse nada. A causa da reforma agrária foi sendo cada vez mais
minada e abandonada.


Desde então, a presença do MST nas
páginas da revista foi declinando. A luta dos sem-terra pela reforma
agrária nunca mais mereceu reportagem de capa, ainda que para
criticá-la. A presidenta Dilma Rousseff assumiu a presidência e governou
os três primeiros anos do seu mandato com o MST e a reforma agrária na
mais absoluta invisibilidade. Portanto, foi mais fácil para ela
registrar os piores índices de investimentos na causa: conseguiu
destinar um volume de terras à reforma agrária menor do que seu
adversário, FHC, e assentou um número menor de famílias do que seu
antecessor, Lula. E com a benevolência da revista.

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