quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A lei não é para todos

A lei não é para todos - Carta Maior



A lei não é para todos

Como a Operação Lava Jato reforça no país uma ideia
perigosa: a de que prisão é justiça





ELIANE BRUM - EL PAIS











Operação Lava Jato,
mesmo com todas as falhas e abusos cometidos, assim como a vaidade
descontrolada de parte de seus protagonistas, presta um grande serviço
ao Brasil ao revelar a relação de corrupção entre o público e o privado.
Uma relação que atravessa vários governos e vários partidos e vários
políticos de vários partidos. E a Operação Lava Jato presta também um
grande desserviço ao Brasil ao reforçar uma das ideias mais perigosas,
entranhadas no senso comum dos brasileiros, e realizada no concreto da
vida do país: a de que prisão é sinônimo de justiça. Num país em que o
encarceramento dos pobres e dos negros tornou-se uma política de Estado
não escrita – e, paradoxalmente, acentuou-se nos governos democráticos que
vieram depois da ditadura civil-militar (1964-1985), reforçar essa
ideologia não é um detalhe. Tampouco um efeito colateral. É uma
construção de futuro.

A Lava Jato tem um grande impacto sobre a
vida do país, que ecoará por muito tempo e, em alguns aspectos, será
constituinte do Brasil dos próximos anos ou décadas. É por essa razão
que me parece fundamental enfrentar as complexidades e as contradições
desse processo para além do contra ou a favor. O que busco fazer neste
espaço é tentar interpretar os sentidos que vão sendo construídos ou
reforçados pela Lava Jato, o que anda pelas bordas dessa operação, mas
não por isso é menos importante. E que talvez seja mais permanente.

Já escrevi (leia aqui)
que o fato de a grande “purgação” nacional se dar por crimes contra o
patrimônio e não por crimes contra a vida tem o efeito profundo de
reforçar uma deformação: a de que a vida humana vale pouco, o que
importa é o patrimônio. Essa deformação é constitutiva da formação do
Brasil como nação e, nos anos recentes, foi enormemente reforçada com a
fundação de uma democracia que escolheu deixar impunes os torturadores e
assassinos da ditadura civil-militar. Com a Lava Jato, esse traço
constitutivo do Brasil se tornou ainda mais cimentado. E as
consequências não são nem serão pequenas.

Prisão como sinônimo
de justiça é outra ideologia que está sendo reforçada pela Lava Jato.
Assim como o pouco valor dado à vida, ela também é antiga e entranhada
no imaginário nacional. Mas cresceu e se ampliou com a disseminação em
programas policiais/sensacionalistas de TV que não só pedem a prisão,
mas também a execução de “bandidos”, em geral negros e pobres,
como solução para o aumento da violência. Com a Lava Jato, essa
ideologia foi ainda mais reforçada. Ao atingir os que nunca eram presos,
os ricos, os poderosos, os políticos... a interpretação de prisão como
justiça alcançou um outro patamar. Afinal, estes eram os “acima da lei”.
E com a Lava Jato foram alcançados.

Os operadores da Lava Jato
compreenderam bem o anseio popular e o usaram a seu favor, produzindo
imagens amplamente disseminadas pelas TVs e pela internet de empresários
e principalmente de políticos algemados e humilhados. Sem contar a “condução coercitiva” de Lula, que,
da forma como foi feita, de imediato foi interpretada como “prisão”.
Este espetáculo foi estratégico para o apoio da população à Lava Jato.
Mas não só reforçou a interpretação de que a única forma de fazer
justiça é prender, como açulou algo muito grave e também constitutivo do
Brasil: confundir justiça com vingança. As imagens produzidas pelos
operadores da Lava Jato e replicada milhões de vezes na TV e na internet
não serviram para a ideia da justiça, mas para a ideia da vingança.
Foram imagens produzidas para o gozo da população. E esta é uma escolha
política.

Diante de cada notícia, e elas se acumulam a cada dia,
as palavras favoritas são: “Finalmente prenderam!”. Ou: “Por que ainda
não está preso?”. Ou ainda: “Tem que prender!”.

Nesta construção
ideológica, a Lava Jato tem o efeito de produzir uma ideia de que,
agora, a justiça é para todos. Ou a prisão é para todos, já que justiça e
prisão são usadas como sinônimos. Num dos países mais desiguais do
mundo, atinge-se pelo menos uma igualdade: a de que todos podem – e são –
presos. Esta ideia, porém, não é apenas manipuladora. Ela é
comprovadamente falsa. E ela serve para mascarar a enorme desigualdade
do Brasil. Também na justiça. E também na prisão.

Se o
encarceramento em massa fosse solução para a violência, no Brasil se
dormiria de porta aberta. Com mais de 650 mil presos – e crescendo –
temos a terceira maior população carcerária do mundo. O Brasil só perde,
por enquanto, para os Estados Unidos e para a China. A maioria dos
presos é composta por pessoas negras, pobres e com pouca escolaridade.
Esta população ocupa menos de 394 mil vagas. O que significa que, com
uma taxa de ocupação de 163,9%, estão não apenas presos, mas amontoados.

A
maioria dos presos é composta por homens jovens, o que significa que
está se encarcerando a juventude do Brasil. Menos de 10% deles
concluíram o ensino médio. Uma pesquisa de 2014 mostra
que a taxa de mortes por assassinato nas prisões brasileiras é três
vezes maior do que na população geral – e isso sem contar Rio e São
Paulo, que não informaram seus números. Os dados demonstram que quem
mais morre assassinado no Brasil são as pessoas presas, sob
responsabilidade do Estado.

A política de encarceramento dos
jovens pobres e negros e com pouca escolaridade se revela também uma
política de extermínio. E o Estado não é responsabilizado pelo genocídio
cometido. Apenas nos primeiros 14 dias do mês de janeiro deste ano 115 presos morreram assassinados em três penitenciárias do
Brasil. Uma tinha quase três vezes mais presos do que o número de
vagas, outra duas vezes mais e outra quase o dobro. Podemos afirmar que
os presos do sistema carcerário brasileiro estão entre os grupos que
sofrem mais ilegalidades. E seguidamente isso resulta em sua morte. E
assim o país perde parte de sua juventude e de sua força de trabalho.


No
Brasil, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” é muito popular,
embora a pena de morte não exista oficialmente no país. Mas “bandido” é
uma palavra ampla demais. E que esconde coisas demais. A maioria dos
presos praticou crimes contra o patrimônio e relacionados a drogas. Os
que cometeram crimes contra a vida são uma minoria. Apenas na cidade do
Rio de Janeiro, de 1.330 acusados por tráfico em 2013, 80,6% eram réus primários. Em São Paulo, outra pesquisa analisou
os flagrantes por tráfico de drogas, mostrando que quase 60% das
pessoas não tinham antecedentes criminais e apenas 3% portavam algum
tipo de arma. A média apreendida era de 66,5 gramas de droga. Mas apenas
9% foram absolvidas ou responderam por porte. O restante teve penas de
até cinco anos de prisão por tráfico.

É possível afirmar que as
superlotadas e perigosas prisões brasileiras estão abarrotadas de
pessoas sem antecedentes criminais, que não deveriam estar lá porque a
prisão deveria ser a última medida, reservada para os crimes mais
graves. Quando se coloca uma pessoa que cometeu homicídios dolosos (com
intenção de matar) ou latrocínios (matar para roubar) e uma pessoa que
carregava alguns gramas de maconha no bolso não só no mesmo lugar
concreto – a prisão – como também no mesmo lugar simbólico, o de
“bandido”, o crime é da sociedade contra a pessoa.

A lei de
drogas de 2006 aumentou as penas para o tráfico de drogas, mas manteve a
ambiguidade entre “usuário” e “traficante”. Ao mantê-la, entre outros
problemas, multiplicou as prisões por “tráfico”, um dos principais
fatores do aumento do encarceramento e da superlotação das prisões. Na
prática, o que se vê e as pesquisas comprovam é que o “usuário” é o
branco de classe média e alta, escolarizado – e o “traficante” é o negro
e pobre com pouca escolaridade. Os grandes traficantes de drogas
raramente são alcançados, como o noticiário recente já demonstrou.

A
política de “guerra às drogas”, como já está mais do que comprovado, é
um desastre para o Brasil, causando o extermínio da juventude pobre e
negra e eliminando potencialidades. Entre as várias razões para seguir
com uma política que já se mostrou genocida, cara para os cofres
públicos e totalmente ineficiente estão as de manter os interesses e os
lucros do mercado de drogas e armas intactos, assim como os da poderosa
indústria de segurança.

Um exemplo recente. Rafael Braga, 29 anos, foi preso nas manifestações de 2013,
no Rio, por portar dois frascos lacrados: um de desinfetante Pinho Sol e
outro de água sanitária da marca Barra. A Polícia Militar o acusou de
portar material explosivo. O jovem negro e pobre tornou-se então o único
preso político dos protestos de 2013. Depois de passar mais de dois
anos na prisão, em janeiro do ano passado Rafael estava há apenas 40
dias cumprindo pena em regime aberto e já trabalhando como auxiliar de
serviços gerais quando foi novamente preso.

Os PMs que o
prenderam em flagrante afirmaram que ele portava 0,6 grama de maconha,
9,3 gramas de cocaína e um morteiro. Rafael diz que o material foi
plantado e que ele foi torturado para que passasse informações sobre o
tráfico no local, questões que desconhecia. Ainda assim, Rafael foi condenado com base apenas no depoimento dos policiais que o prenderam,
uma aberração que é frequente neste tipo de caso. Em 20 de abril,
Rafael foi condenado pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro a 11 anos e três
meses de prisão por tráfico e associação ao tráfico de drogas. O
Instituto de Defensores de Direitos Humanos, que atua na defesa de
Rafael, tentou reverter essa decisão em segunda instância, mas, por dois
votos a um, os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio mantiveram
Rafael preso.

Como comparação: em julho, durante um plantão na
madrugada, o desembargador José Ale Ahmad Neto deu habeas corpus a Breno
Fernando Solon Borges, de 37 anos. Ele é filho da presidente do
Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul, Tânia Garcia Freitas.
Breno havia sido preso em flagrante, em abril, com 129,9 quilos de
maconha e munições para armas de calibre 7,62 mm e 9 mm. Depois de
passar dois meses na prisão, foi transferido para uma clínica médica de
Campo Grande para “se submeter a um tratamento contra o transtorno de
personalidade borderline”.

Aponto aqui para as diferenças de
medidas no mesmo sistema legal e no mesmo país. E para a desproporção do
que estaria na mão de um e de outro. E não para bradar pela prisão do
filho da desembargadora, porque não acredito na falsa igualdade do
“todos presos”. Acredito no acesso à justiça para todos. E na garantia
do direito de defesa para todos. A desigualdade entre Rafael e Breno
começou na base. É racial e é social. A desigualdade nas medidas e nas
desmedidas da prisão e da soltura é apenas o fim de um processo
perverso, que a cada dia se reforça um pouco mais.

Não, a lei
não é para todos. Nem a prisão. Muito menos a justiça. Hoje, não se pode
falar no encarceramento dos pobres e negros como política de Estado sem
sublinhar o que está acontecendo com as mulheres e a lei de drogas. De
2005 a 2014, a quantidade de mulheres presas cresceu numa média de 10,7%
ao ano. Em termos absolutos, a população feminina saltou de 12.925
presas em 2005 para 33.793 em 2014. A estimativa é de que hoje o aumento
seja ainda maior. As mulheres representam 5,8% da população prisional.
Mas, no caso delas, o “tráfico de drogas e associação para o tráfico”
tem um peso bem maior que no caso dos homens: 64% das condenações.

O
efeito de jogar mulheres e homens na prisão por anos por estarem com
pequenas quantidades de drogas é um desastre para toda a sociedade. Além
de injusto, causa o esfacelamento dos laços, fragiliza ainda mais os
filhos destas pessoas e desestrutura famílias que já têm enorme
dificuldade para se manter vivas num país tão desigual. Por que, então,
isso continua? São perguntas como esta, mais do que gritos raivosos de
“tem que prender”, “tem que matar”, que podem construir um outro destino
para o Brasil.

Antes de gritar “tem que prender”, “tem que
matar”, é imperativo lembrar que quase 40% das pessoas presas hoje no
Brasil estão lá sem jamais terem sido julgadas. Este dado permite
afirmar que é contra estes presos que se comete um crime. Quem fica
gritando “tem que prender”, “tem que matar” pode estar deixando de
perceber que está apenas reforçando a desigualdade do Brasil e mantendo o
direito de defesa e o acesso à justiça como privilégios. E direitos não
são privilégios.

Quando o acesso à justiça e ao direito de
defesa se tornam privilégios, estamos diante de uma monstruosidade. E é
essa monstruosidade que vivemos hoje no Brasil. E que se agravou por
omissão, covardia e incompetência dos últimos governos democráticos – ou
pela tal “governabilidade”, que implica não desagradar aliados de
ocasião. Governos como os de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma
Rousseff tinham a obrigação de fazer melhor do que fizeram neste campo,
depois de o país sofrer a violação de 21 anos de ditadura. E por não terem feito melhor, o Brasil hoje paga um preço alto demais.

Nem
mesmo ajustando a lente para as prisões da Lava Jato há igualdade na
comparação com a massa de encarcerados. Há vários presos da Lava Jato
que tiveram prisão domiciliar decretada por razões de saúde. No último
30 de agosto, a desembargadora Katya Maria de Paula Menezes Monnerat
negou o mesmo direito a Rafael Braga, que precisa tratar a tuberculose.
Doença que ele contraiu na Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu II).
Segundo o Portal da Saúde,
pessoas presas têm, em média, uma chance 28 vezes – vinte e oito vezes –
maior do que a população geral de contrair tuberculose. E isso
aconteceu com Rafael Braga, que teve a tuberculose comprovada por laudo
médico. Mas o direito concedido a presos da Lava Jato não foi concedido
ao preso das manifestações de 2013. Por quê?

E, de novo: não
estou gritando “Não pode soltar”, referindo-me aos presos da Lava Jato.
Não me cabe julgar a situação de saúde de ninguém. Acredito que presos
são cidadãos e cidadãos têm o direito legal de ter sua saúde levada em
consideração pelo sistema judiciário. O que aponto é a quantidade de
presos negros e pobres – e Rafael Braga é apenas um entre milhares – que
adoecem na prisão e lá são mantidos sem tratamento ou com tratamento
precário, em condições insalubres, as mesmas que produziram a doença.
Com frequência assustadora estas pessoas morrem antes de serem
libertadas.

Não, a lei não é para todos no Brasil.

Na data emblemática de 7 de setembro, será lançado o filme que afirma no título o contrário do que vejo e investigo: Polícia Federal - A Lei é Para Todos.Pretendo
assisti-lo. Mas posso adiantar que me parece perigoso tal título
associado à Lava Jato, uma operação em andamento, por todas as razões e
porque acredito que a Lava Jato reforçou a deformação de confundir
prisão com justiça. E também a deformação de valorizar mais o patrimônio
do que a vida. Me parece perigoso principalmente porque reforça a ideia
de que agora há igualdade na aplicação da lei. Deveria haver, mas não
há.

Fazer cinema é um ato também político – e não haveria como
não ser, no meu modo de ver. O que me parece inaceitável é alguém
afirmar que seu filme é “apolítico”, o que é uma forma de fazer política
negando a própria política. E isso é desonesto.

Ao estarem na plateia do pré-lançamento do filme em Curitiba, alguns deles fotografados com grandes sacos de pipoca na mão, o juiz Sergio Moro,
o procurador Deltan Dallagnol e outros protagonistas faltaram com a
ética. Eles conduzem algo crucial para o Brasil, num momento tão
delicado para o país e para a própria Lava Jato, que, é preciso dizer,
não pertence a eles. Cenas como estas desrespeitam os cidadãos. A vida
não é entretenimento. E eles são personagens da vida, ainda que na tela
tenham sido convertidos em personagens de entretenimento. Como
funcionários públicos, com as responsabilidades que têm, devem respeito
ao público.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva virou personagem de
um filme baseado na sua vida e o assistiu na poltrona do cinema do
Palácio do Alvorada, como presidente do Brasil, eu o critiquei. E também
fiz uma crítica de Lula, o filho do Brasil, que
ao reduzir a complexidade do homem a um clichê de herói fez uma peça de
propaganda. E uma peça de propaganda ruim. É bastante provável que o
filme da Lava Jato tenha a pretensão de influenciar o momento e também
as eleições a seguir, como o de Lula também tinha. É preciso assistir a
este com essa hipótese em mente, assim como era preciso assistir ao
outro.

No campo do cinema, sugiro assistir a um documentário
disponível na Netflix, que mostra em profundidade as engrenagens e a
evolução da política de encarceramento nos Estados Unidos. Chama-se A 13a Emenda.
Guardadas as diferenças, há muitos alertas e perguntas que podemos
fazer sobre o Brasil e a terceira população carcerária do mundo. E
crescendo. Pode nos ajudar a recolocar o tema da desigualdade onde ele
deve estar e impedir as sucessivas tentativas de mascará-lo.

O Brasil já é um país-condomínio e
um país de cadáveres insepultos, porque morreram sem justiça, às vezes
sem nome. Quem berra “tem que prender”, “tem que matar” talvez pense que
a solução seja botar metade do país na cadeia. Mas, cuidado: talvez
você acredite que está numa metade e, quando perceber, o despacharam
para a outra.
 
 
Eliane Brum é
escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho
da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma
Duas.
Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/
Facebook: @brumelianebrum

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