sábado, 2 de setembro de 2017

No aniversário do golpe, é hora de avaliar a Globo

No aniversário do golpe, é hora de avaliar a Globo, por Luís Nassif



 

Peça 1 – os antecedentes do processo de concentração da mídia

Em 10 de novembro de 1996, em minha coluna na Folha, sob o título “A globalização da mídia”,
alertei para os efeitos das novas tecnologias no mercado de mídia, e os
riscos de uma concentração excessiva de poder nas mãos da Globo.


Dizia


Nos próximos anos, será a vez de a
mídia entrar na dança da modernização e das grandes fusões que estão
marcando a imprensa, em nível mundial..

No Brasil, será um dos últimos
setores a sentir na própria carne os efeitos da globalização. E o
resultado final poderá ser bom tanto para a mídia como para o Brasil,
desde que se estabeleça um equilíbrio nesse jogo.
(...) Se não houver reação dos demais
grupos, essa acumulação de forças poderá provocar o monopólio virtual
da comunicação no Brasil, algo que não interessa nem aos concorrentes
nem ao Brasil.

 
Mesmo que em seu segmento de atuação,
individualmente, cada concorrente tenha uma operação específica mais
competente ou, no mínimo, competitiva em relação à Globo, a soma de
forças do complexo poderá desequilibrar a competição em todas as
frentes, seja em jornal, editora ou televisão.
É essa ameaça que deverá levar nos
próximos anos, inevitavelmente, a dois processos complexos. Numa ponta, a
uma ampla política de fusões e alianças estratégicas, entre grupos
nacionais e estrangeiros, da qual resultará novos supergrupos de
comunicação.

 
Na outra, a uma batalha política para
colocar limites ao poder da Globo, já que há o risco concreto de que
assuma o controle virtual da mídia no país.
Houve reação imediata de outros grupos ao meu artigo.


O presidente do grupo Silvio Santos, Luiz Sebastião Sandoval, me
contratou para uma palestra para os principais executivos e, para minha
surpresa, queria me enviar para análise os planos estratégicos das
quatro maiores empresas do grupo. Disse-lhe que não era consultor e,
além disso, trabalhava para uma emissora concorrente, a TV Bandeirantes.


Ele me explicou a razão do convite. Queria que eu ajudasse a levantar
argumentos que permitissem aos executivos convencer Silvio Santos sobre
a necessidade de se preparar para o novo tempo.


Do lado da Folha, Otávio Frias de Oliveira me incumbiu de um trabalho
complicado. Queria que eu intermediasse um contato com João Saad, da TV
Bandeirantes, para uma proposta de aquisição de parte do capital da
Rede Bandeirantes, pela Folha e a Abril. Ainda não tinha havido o
rompimento entre ambos, por conta da capitalização da UOL.


Conseguiu me indispor com herdeiros dos dois lados. Mas valeu pelo
enorme prazer de testemunhar dois pioneiros da mídia – Frias e Saad –
relembrando episódios políticos, especialmente do período Ademar.


João Saad me ofereceu a ancoragem do Jornal da Band e o papel de
consultor do filho Johnny, que estava retornando ao grupo após um
período afastado. Com problemas com minha empresa, a Dinheiro Vivo, e
porque o convite feriu suscetibilidades do Johnny, acabei recusando a
proposta. Retornando de Nova York, Paulo Henrique Amorim assumiu a
ancoragem.


Ainda fui mensageiro de outra proposta de parceria, do jornal O Dia, que pretendia assumir a TV Bandeirantes do Rio de Janeiro.


Enfim, conto apenas o que testemunhei. Devem ter havido mais
movimentos expressivos visando fusões e incorporações, mas nenhum
frutificou, devido ao caráter eminentemente familiar das empresas de
mídia. O fato de um simples artigo ter despertado tantas reações era o
retrato do clima do aturdimento dos grupos de mídia, ante o novo mundo
que se descortinava.


Na época, estava no auge a tiragem dos jornais. Havia recursos em
caixa para facilitar operações de fusão e incorporação. Mas o ranço
familiar falou mais alto.


Mais à frente, a Globo acabou tomando a iniciativa e se associando
aos jornais paulistas em projetos de menor relevância, com o Estadão em
um portal de imóveis e com a Folha no jornal Valor, aproveitando a queda
da Gazeta Mercantil.


Peça 2 – a queda dos grupos de mídia

Nos anos seguintes, a Globo avançaria em todos os níveis.


Consolidaria a CBN no setor de rádios, dominaria o conteúdo das TVs a
cabo, se apropriaria de fatias cada vez maiores do bolo publicitário,
lançaria um novo portal, o G1.


O único grupo que conseguiu competir, ainda que em nível menor, foi a
TV Record, graças ao modelo de negócios com a religião. Para
sobreviver, as demais redes tiveram que alugar horários para religiões e
se arrastar com audiências medíocres.


Na campanha pelo impeachment – que se iniciou no longínquo 2005,
quando Roberto Civita implantou na Veja o estilo Murdoch – a Globo
sempre foi o grupo mais esperto. Deixava Veja e Folha montarem os
factoides e se limitava a repercutir no Jornal Nacional, evitando de se
contaminar o estilo assumido por ambas as publicações.


Com todos os veículos seguindo a mesma linha editorial, a Globo
assumiu o comando. Nenhum deles teve o tirocínio do velho Frias que, nos
anos 80, ousou o contraponto de tirou uma geração de leitores do
Estadão.


Enquanto os demais veículos teimavam em atacar as migalhas aos blogs
independentes, a Globo conseguia avançar com a voracidade de um ogro
sobre as verbas publicitárias públicas e privadas.


Nesse período, a Abril foi caindo, a ponto de hoje em dia trocar uma
sede monumental na Marginal Pinheiros por um prédio pequeno no Morumbi.
Perdeu o bonde da Internet devido à resistência dos editores de papel.


O Estadão não conseguiu se viabilizar como jornal, nem como rádio,
sustentando-se agora no pioneirismo da Agência Estado. A Folha sentiu os
mesmos problemas dos demais jornais impressos e a UOL acabou se
salvando com prestação de serviços e a grande sacada de criar seu
próprio meio de pagamento.


Enquanto isto, Google e Facebook avançam cada vez mais sobre a publicidade interna.


Alguns anos atrás, um jornalista com acesso aos irmãos Marinho
comentava sua preocupação com o enfraquecimento dos demais grupos.
Acabaria por expor de maneira perigosa a concentração de poder em torno
da Globo.


Peça 3 – o ponto de não retorno

Não se sabe o que ocorreu de lá para cá. Os Marinho passaram a se
afastar cada vez mais da condução editorial e comercial do grupo. E o
comando foi entregue a um grupo de jornalistas que decidiu viver
intensamente o presente, sem nenhuma preocupação com a perpetuação da
organização.


A Globo se tornou uma máquina de destruição das instituições, em um
processo permanente de exibição de músculos, de construção midiática da
realidade, atropelando leis, abrindo espaço para a desmoralização dos
Três Poderes, estimulando o uso selvagem do direito penal do inimigo.


Culminou com a iniciativa inédita de convocar a população para
passeatas pró-impeachment e de montar a dobradinha com a Lava Jato para
instrumentalizar politicamente as delações e os indícios da operação.


O aniversário do golpe é, portanto, ocasião adequada para se analisar
o papel das Organizações Globo na destruição da ordem institucional.


Com exceção da mídia venezuelana, não se tem notícia de um grupo de
mídia que tenha abusado tão imprudentemente de seu poder sobre a opinião
pública.


Deve-se à Globo, mais do que a qualquer outro personagem, a
entronização de uma quadrilha no poder e, com ela, as negociatas que
campeiam a torto e a direito no Congresso, as ameaças sobre a Amazônia, o
desastre final das contas públicas em função de uma política econômica
irresponsável, da qual a Globo é a principal avalista.


Nem a reação posterior à quadrilha a absolverá do crime de uma
desestabilização política tão grande que gerou até ameaças tipo
Bolsonaro. Isso porque, no plano psicossocial, a Globo teve papel
central na disseminação no ódio, que se refletiu diretamente no
comportamento da Polícia Militar e no aumento expressivos dos autos de
resistência, na consolidação do direito penal do inimigo, na caça aos
resistentes, na desmoralização final da justiça, na destruição das
principais políticas sociais, e, agora, na queima irresponsável de
ativos nacionais.


Roberto Marinho era um empresário esperto. Quem o conheceu de perto o
considerava um comerciante pouco informado, mas que conhecia
razoavelmente seu negócio. E teve a sagacidade de entregar a TV a mãos
profissionais e montar a estratégia de negócios com conselheiros de
primeiro time, os velhos lobistas e economistas cariocas, seus
contemporâneos.


Mais que isso, contou em postos chave com chefias jornalísticas fieis ao projeto de perpetuidade do grupo.


Aproveitou mais do que qualquer outro grupo da proximidade com o
regime militar, e foi dos últimos a entrar na campanha das diretas.
Quando percebeu a mudança de cenário, seus principais comandantes, como o
jornalista Evandro Carlos de Andrade, trabalharam incessantemente para
tentar reverter a imagem de aliada da ditadura que marcou a Rede Globo. E
tinham um cuidado especial em minimizar o papel da Globo no golpe, na
eleição de Collor.


Sobre o futuro da política, há apenas uma certeza: seja quem assumir o
poder, a Globo terá que ser tratada como um problema nacional. O preço
de se ter um país moderno, plural, respeitador da lei e das instituições
será o de enquadramento definitivo da Globo, uma distribuição de seu
poder de mercado, acabando não apenas com a propriedade cruzada dos
meios de comunicação, mas regulando o conceito de rede nacional. Mesmo
sem ter a propriedade das associadas, a Globo controla o conteúdo, a
grade e os grandes pacotes de comercialização. É esse domínio que
caracteriza o controle, não a propriedade em si.


O país moderno só se imporá sobre o atraso no dia em que houver limites a esse poder midiático.

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