segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A lição que não se aprendeu

A lição que não se aprendeu - TIJOLAÇO | 



A lição que não se aprendeu

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O passado é uma coisa danada, mesmo.


Pior que água, que acaba brotando de onde menos se espera, teimoso
que só, sempre a nos lembrar de onde erramos, onde deveríamos ter tomado
um caminho diferente para não darmos no abismo.


Esta semana, no meio da crise horrenda da Rocinha, quando ao fundo do
tiroteio surgem tristes os arcos inconfundíveis de um Ciep da era
Brizola, recebo um e-mail. Era o velho amigo jornalista Sérgio Caldieri,
lembrando que, em 1985, a revista alemã Der Spiegel publicou
uma reportagem sobre os Cieps e ele, assessor de imprensa de Darcy
Ribeiro entregou o exemplar ao professor e lamenta: ” Não guardei uma
cópia, a revista nunca apareceu e nem existe nos arquivos da Fundação
Darcy Ribeiro”.


Disse ao Sérgio que tinha quase certeza do “fim” que a Der Spiegel tomou: virou um quadrinho numa pilastra da sala do apartamento de Leonel Brizola, em Copacabana, perto de outro, onde o NY Times dizia que, naquelas escolas, “a primeira aula era o café da manhã”.


Caldieri conseguiu o texto e enviou-me. Conta a história de Oswaldo,
um menino que perambulava pela rua, alimentado pela caridade, tomando
conta de automóveis.


Oswaldo, hoje, se está vivo, é um senhor de 45 anos, talvez pai de
outros Oswaldos. Se saiu ou não da pobreza e do abandono e se não é este
o destino de seus meninos e meninas, não sei. A corrente da estupidez é
muito forte e aquele sonho foi interrompido por um Moreira que prometia
o fim da violência em seis meses – mais ou menos como faz o Moro com o
fim da corrupção com sua Lava Jato – e por um Gabeira que abraçava a
Lagoa Rodrigo de Freitas, rumo ao ecoparaíso.


A Lagoa está limpa, tem até narcejas e capivaras, que bom. Mas igual
não se pode dizer do cuidado com a nossa pobreza. Na coluna de Lauro
Jardim, hoje, registra-se que os gastos governamentais em saneamento
caíram 70%, semestre contra semestre, do ano passado para cá, em nome do
saneamento, claro, do dinheiro a pagar aos rentistas.


A violência, bem, está aí, firme e forte, a servir de pasto aos
ignorantes que acham que há uma guerra a ser vencida e não um povo a ser
cuidado, dignificado, protegido e promovido.


Vai abaixo a matéria da Der Spiegel, que se infiltrou, pelas artes do acaso, nesta semana lúgubre.


Ao menos, Caldieri, Oswaldo e eu tentamos. E continuamos tentando.


A síndrome de Calcutá

Der Spiegel, agosto de 1985
Oswaldo Luiz Machado está dormindo na
rua. Um banco, uma casa, alguns jornais antigos do lixo podem ser
suficientes para os seus 13 anos de idade. Alguns quarteirões no bairro
do Catete, no Rio de Janeiro, são sua vida. Ele ganha cerca de 20
cruzeiros por mês para cuidar de carros estacionados. Os garçons nos
restaurantes da região dão-lhe comida.
Foram eles também os que atraíram o
menino desabrigado para o novo edifício, que se ergueu no final de sua
rua: elementos pré-fabricados de concreto elegantemente curvado, painéis
amarelados brilhantes e grandes janelas em alumínio com o emblema
inimitável do renomado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer.
Há quatro semanas, Oswaldo é um dos
quase 600 alunos do primeiro “Centro Integrado de Educação Pública”
(Ciep). Um dos conceitos escolares talvez mais revolucionários do
Terceiro Mundo está escondido por trás do incômodo nome:


Em um ataque frontal ao empobrecimento da população, o Estado do Rio
de Janeiro, em três anos, está construindo 300 escolas para cada 1.000
alunos, não só com educação , mas também quatro refeições por dia, bem
como cuidados médicos e dentários. Além de centenas de jardins de
infância e creches infantis estão sendo produzidos em uma “fábrica de
escolas” a uma taxa de uma unidade por dia, num total de 2.000.
“Nós temos que desfazer o nó gordio”,
diz o antropólogo Darcy Ribeiro, Secretário Estadual de Cultura do Rio
de Janeiro, defendendo o programa “louco” como chamam seus opositores.
“De outra forma, será a Síndrome de Calcutá”.


Assim, o cientista chama o pântano de fome, sujeira e violência, em
que as grandes cidades dos países em desenvolvimento ameaçam afundar.
“As pessoas nascem na rua, passam toda a vida na selva de asfalto, ou
submergem no mar de casa”, reclama Ribeiro. “E, como resultado da
mecanização na agricultura, mais e mais cidades estão chegando às
cidades sem a menor chance de encontrar trabalho”. A esperança de uma
vida digna continua sendo uma ilusão “.


De fato, o fornecimento de infraestrutura urbana na metrópole de
sete milhões de habitantes do Rio de Janeiro é trinta vezes menor do que
em Paris. E a desproporção aumenta. No ano 2000, a “cidade
maravilhosa”, a maravilhosa cidade, acolherá 17 milhões de pessoas (na
sua região metropolitana).
Acima de tudo, a educação escolar foi
completamente negligenciada nas últimas décadas, aumentando a demanda
simplesmente respondida com oferta reduzida. O dia escolar no Brasil tem
apenas quatro horas e meia, de modo que dois turnos podem dividir as
escassas salas de aula. Nas grandes cidades, é introduzida um terceiro
turno, que limita o horário escolar diário a três horas.
“52 por cento das crianças deixam a
escola antes da conclusão do segundo ano escolar, nem conseguem escrever
e ler corretamente”, explica Riveiro. Na cidade do Rio, apenas 700 mil
vagas escolares estão faltando, em todo o estado 1,5 milhão. 586.987
estudantes inscritos, apenas, comenta o Secretário da Cultura, em 1984
no estado do Rio de Janeiro, com 2350 escolas.
“Não estamos fazendo nada de revolucionário aqui”, diz Darcy Ribeiro, “estamos apenas reinventando a escola convencional”.
É assim que o programa Ciep fornece
lições o dia inteiro. As crianças passam nove horas no complexo, que
está equipado com uma biblioteca e quadra de esportes. Na primeira
unidade, aberta há um mês em Catete, as crianças ficam emocionadas: “É
divertido, é fantástico”.
Há, naturalmente, muitas crianças,
que viviam dos gêneros alimentícios das latas de lixo dos restaurantes.
Aqui você pode encontrar arroz, feijão, omelete, frutas ou leite em
bandejas de aço cromado brilhante na moderna cantina.
As aulas são relaxadas por
apresentações de teatro, pintura e esportes. E depois da ginástica tomam
banhos – para muitas dessas crianças da favela algo inédito. “Aqueles
que nunca tiveram a chance de jantar, alfabetização e higiene”, diz
Teresa Graupner, da Secretaria de Cultura.
A coisa maravilhosa sobre todo o
programa: o sistema funciona – pelo menos até agora. “Não é tão caro”,
diz Darcy Ribeiro, “embora usemos a maioria dos recursos do Estado para
fazê-lo”.
De fato, o governo anterior gastou
80% de seu orçamento em investimentos em áreas de construção urbana, ou
em vias e avenidas onde lindas praias brancas e amplas avenidas abrigam
apartamentos de luxo incomparável.


“Maravilhosa” é o Rio somente naquela borda sul estreita ao longo
das praias que os turistas conhecem. Os milhões de misérias estão
escondidos atrás das montanhas.
Um Ciep custa menos de quatro bilhões
de cruzeiros (dois milhões de marcos). “Mas o Cruzeiro não é estável”,
conclui Ribeiro, “mas eu estimo que a próxima expansão de 100 escolas
custará cerca de 100 milhões de dólares”.
“Edifícios faraônicos” chama isso o jornal “O Estado de São Paulo”.
A oposição é surpreendida pelo
programa cuidadosamente preparado e pelo planejamento financeiro preciso
e teme a crescente popularidade dos reformadores.
Oswaldo Luiz Machado ainda está
dormindo em casa, ainda cuidando de carros, mas agora apenas à noite,
com um estômago cheio e limpo, de banho tomado.
Em breve, ele espera, esta vida
também será uma coisa do passado: no último andar do centro escolar,
dois apartamentos são organizados para doze crianças cada.
Oswaldo quer ser aceito lá.

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