domingo, 17 de setembro de 2017

Delação Premiada: mercadoria do Estado Pós-Democrático

Delação Premiada: mercadoria do Estado Pós-Democrático



Sábado, 16 de setembro de 2017

Delação Premiada: mercadoria do Estado Pós-Democrático

Para
compreender criticamente a “colaboração premiada” é necessário
contextualizar esse instituto. Para além da previsão legal e da
importação acrítica desse instituto, só é possível perceber o
funcionamento concreto da colaboração premiada à luz da razão neoliberal
como nova razão do mundo, na linha defendida por Christian Laval, Pierre Dardot e Antonie Garapon.


Tudo
hoje é tratado como mercadoria. Todos os valores passaram a ser
tratados no registro das mercadorias. A “colaboração premiada” é uma
mercadoria. Aliás, o próprio nome “colaboração premiada” é para “vender”
como algo positivo a delação, que do ponto de vista histórico, sempre
foi uma negatividade.


A
delação é chamada de colaboração para disfarçar o desvalor ético
inerente a todo e qualquer delator. Não poucos autores percebem que, com
a delação premiada, o Estado perde a superioridade ética que deveria o
distinguir do criminoso.


A
liberdade e a verdade, valores da jurisdição penal democrática, passaram
a ser tratadas como mercadorias. Os direitos e garantias fundamentais,
que na concepção de Luigi Ferrajoli, compõem o conteúdo substancial da democracia, também passaram a ser tratadas como mercadorias.


E
o que caracteriza a mercadoria? Mais do que a existência de um valor de
uso e de um valor de troca, é a possibilidade de ser negociada,
substituída e, quando se torna obsoleta, descartada.


No
momento em que o neoliberalismo foi alçado à condição de “nova razão de
mundo”, os valores e princípios que condicionavam a atuação dos
sujeitos, tanto na vida privada quanto na vida pública tornaram-se
negociáveis e, portanto, descartáveis.


Pensem
na chamada “operação Lava Jato”. Não se trata de um processo. Hoje,
existem vários processos da grife “Lava Jato”. Mais do que um complexo
de casos penais, a Lava Jato hoje é um grande produto, explorado à
exaustão pelos meios de comunicação de massa.


Vale
insistir: a Lava Jato não é um caso penal. Não é uma imputação
submetida ao devido processo legal. No que se chama de “Lava Jato”
existem diversos casos penais, em diversos juízos, alguns que seguem o
devido processo legal, outros que apresentam atipicidades. Impossível
tratar todos os casos penais que recebem a etiqueta de Lava Jato como se
fossem um só.
Agora,
à luz da razão neoliberal, a Operação Lava Jato não passa de um
produto, de uma mercadoria. De uma mercadoria espetacular. Lembrando que
em meio à sociedade do espetáculo, tão bem descrita por Guy Debord, a dimensão de garantia do Processo Penal liberal cede lugar à dimensão de entretenimento.


O
desejo de democracia, ligado ao respeito aos direitos e garantias
fundamentais, é substituído pelo desejo de audiência. No caso
brasileiro, uma audiência em relação a qual não foi possível construir
uma cultura democrática.


A rigor, no neoliberalismo desaparece o sujeito. O subjectum,
aquele que depende e necessita se submeter a outro (e o primeiro outro é
a mãe que alimente o ser frágil e impotente), passa a acreditar que não
necessita do outro, que se basta e que sempre se bastou (o discurso da
meritocracia é uma variante desse fenômeno).


No
plano imaginário, o sujeito transforma-se em um projeto empresarial. Em
apertada síntese, cada um passa a se perceber como um empresário em
luta permanente com os outros, tidos como adversários empresariais.
Desaparece o diálogo, necessário à construção de vínculos, e, com ele, a
possibilidade de um projeto coletivo ou mesmo a consciência da dimensão
de classe.




A
razão neoliberal levou à superação do Estado Democrático de Direito.
Foi a razão neoliberal, ao buscar o lucro ilimitado, que levou à
percepção dos direitos e garantias fundamentais como obstáculos à
eficiência do Estado e do Mercado.


No
Estado Pós-Democrático, desaparece a dimensão substancial da democracia
(e mesmo a regra da maioria torna-se descartável). Se o Estado
Democrático de Direito se caracterizava pela existência de limites
rígidos ao exercício do poder, de qualquer poder, no Estado
Pós-Democrático, em que o único objetivo é o aumento do Capital,
inexistem limites rígidos ao exercício do poder. Mas, não é só. No
Estado Pós-Democrático, que surge em atenção à razão neoliberal, o poder
político cada vez mais se identifica com o poder econômico.


O
exercício concreto do poder passa a se manifestar ora na forma de poder
repressivo, com uso constante da violência de um terceiro necessária à
contenção e exclusão daqueles que não interessam ao projeto neoliberal,
ora na forma de “psicopoder” (Byung-Chul Han), que se manifeste sem a
necessidade do exercício de um poder externo, de forma silenciosa e
sutil a penetrar no psiquismo. É o psicopoder que faz com que o
indivíduo, que se imagina como um empresário (e, portanto, como um órgão
do Mercado, detentor imaginário de parte do poder político e do poder
econômico), se submeta, sem perceber, ao poder econômico.


Os indivíduos submetidos ao psicopoder
atuam de maneira voluntária, aderem ao projeto de dominação dos
titulares do poder econômico sem perceber que também são explorados. São
levados a acreditar na eficiência economicista e não na efetividade
adequada à Constituição. A delação premiada é um instrumento que busca
legitimidade nessa lógica eficientista, que não reconhece limites éticos
ou jurídicos aos meios que buscam determinados fins adequados (sucesso
econômico) ao projeto neoliberal.


No
neoliberalismo, a parcela que se imagina livre do controle penal e da
opressão de classe, na realidade, está submetida, vinte e quatro horas
por dia, ao autocontrole e à autoexploração voltados aos interesses dos
detentores do poder econômico.


Assim,
mesmo nos bairros mais pobres das cidades, os indivíduos consideram o
Estado um inimigo de seus projetos empresariais, valorizam a
meritocracia e desconsideram a dimensão estrutural da crise ética
(acreditam, por exemplo, que a “corrupção” é um problema relacionado
apenas ao mau comportamento individual).


Os
efeitos da razão neoliberal são trágicos onde quer que se façam
presentes. Pense-se, por exemplo, no Sistema de Justiça Criminal, que
hoje se concretiza através de processos penais que abandonaram os
valores “liberdade” e “verdade”, inerentes à jurisdição penal
democrática.




Liberdade
e verdade, na pós-democracia, foram substituídos pelos valores
“punição” e “consenso”. Consenso que, na delação premiada, se dá em
torno de uma informação que muitas vezes não guarda relação com a
verdade.


A
razão neoliberal constrói uma visão de mundo que reduz as complexidades e
que aposta em construções discursivas vendidas como positividades
(pós-verdade). A realidade, complexa, é formada tanto por positividades
quanto por negatividades. A informação a ser negociada, ao contrário, é
pura positividade, é aquilo que se quer ouvir.


A
liberdade, em especial daqueles que incomodam o funcionamento do
Mercado e a lógica do poder econômico (pessoas sem poder de compra ou
adversários políticos dos detentores do poder), pervertida pela visão
neoliberal, passa a ser vista como uma negatividade, algo de ruim (a
eventual absolvição de um réu acaba “vendida” como sinônimo de
impunidade: “bandidolatria” para se usar uma expressão, típica do
pensamento simplificador da moda), enquanto a prisão e a
exclusão/eliminação de sujeitos (não-empresários) como uma ação positiva
do Estado.


A verdade, sempre
complexa e parcial, sempre positividade e negatividade em relação
dialética, é abandonada na jurisdição neoliberal. A impossibilidade da
descoberta da “verdade”, também vista como uma negatividade, fez com que
esse valor acabasse substituído pelo valor “informação”.


A
informação, sempre uma positividade que tem valor de troca e, ao mesmo
tempo, pode ser descartada, revela-se mais adequada ao regime das
mercadorias próprio da razão neoliberal. Não por acaso, nas “delações
premiadas”, as informações selecionadas a partir de critérios subjetivos (não raro, condicionados por perversões inquisitoriais
e pelos desejos de punir típicos de sociedades inseridos em uma
tradição autoritária) dos agentes encarregados da persecução penal, são
mais importantes do que a descoberta da verdade.


A
descoberta da verdade torna-se acidental (a verdade deixa de ser uma
meta, ou melhor, desaparece o objetivo de se aproximar da verdade no
processo penal). Por “verdade” (poder-se-ia dizer aqui “pós-verdade”)
passa a ser entendida a confirmação discursiva da hipótese acusatória.


Na
realidade, a informação rara (a “raridade” é uma qualidade que se
constrói a partir da relação oferta-procura), entendida como aquela que
comprova a hipótese acusatória, revela-se a de maior valor, uma mina de
ouro tanto para os acusadores quanto para o acusado que quer fazer jus a
uma compensação (antiética) pelas declarações prestadas.


A
informação tornou-se o objeto de uma declaração despida de qualquer
complexidade inerente aos acontecimentos naturalísticos. Mais importante
do que retratar a verdade, a informação deve constituir uma
positividade, isto é, aos olhos dos agentes da persecução penal e do
juiz, confirmar a hipótese acusatória e permitir a imposição de uma
pena, “apresentada” também como uma positividade.


No
procedimento “probatório”, o que importa para os atores estatais
tomados pela razão neoliberal é a positividade consistente em confirmar a
hipótese acusatória. E, não raro, a hipótese acusatória não passa de
uma certeza delirante do acusador. Se a cultura inquisitorial leva ao “primado da hipótese sobre o fato”, a informação obtida na delação, se for ao encontro da certeza delirante do julgador, torna-se extremamente valiosa (que o digam alguns famosos delatores da recente história brasileira).


A
negatividade própria da improcedência da pretensão punitiva deve ser
evitada, mesmo que para tanto direitos e garantias fundamentais
necessitem ser afastados e que informações que não interessem à
construção discursiva da condenação precisem ser abandonadas.


Em
resumo, a informação “obtida” nas delações premiadas, muitas vezes
obtidas após prisões e coações ilegítimas, em um quadro no qual direitos
e garantias fundamentais estão afastados em nome da lógica neoliberal,
não guarda qualquer relação necessária com a verdade. Trata-se de um
mero negócio no qual o valor “verdade” também é descartável enquanto o
significante “verdade” passa a ser manipulado.
O
quadro torna-se ainda mais grave diante da tradição autoritária em que a
sociedade brasileira está lançada. Há, portanto, um problema
hermenêutico.


Como se sabe,
há uma diferença ontológica entre texto e norma. A norma é sempre
produto do intérprete. O problema é que no Brasil o interprete está
lançado em uma tradição autoritária que acaba por condicionar a criação
das normas a partir do texto legal.


Tradição que fez com que o instituto da “delação premiada” fosse incorporado ao ordenamento brasileiro sem os controles epistêmicos
presentes em outras legislações (por exemplo, vedação de delação de réu
preso, admissão só para crimes excepcionais como o terrorismo,
necessidade de advogados distintos para cada delator, limites temporais e
legais bem definidos etc.).


Vale,
ainda, analisar alguns problemas verificados na prática dos “acordos”
de delação premiada. Um instrumento legal democrático deve reduzir ao
máximo os espaços discricionários e impedir, na medida do possível, o
arbítrio. A delação premiada, como ela é tratada no Brasil, não atende a
esse fim.


No Brasil, que
acredita no uso da força em detrimento do conhecimento para resolver os
mais variados problemas, tem se admitido a delação de réu preso
cautelarmente. Problemas:


Primeiro: a liberdade, ao menos desde Kant, não pode ser objeto de negociação.

Segundo:
vício na formação da vontade do delator. A prisão, por evidente,
compromete a voluntariedade necessária à celebração lícita de qualquer
negócio, em especial de um negócio processual penal que possa resultar
em restrição da liberdade. Há, inegavelmente, um componente de chantagem
que afasta a legitimidade do acordo.


Terceiro:
se o “delator” está preso cautelarmente, ao menos nas democracias,
significa que a liberdade dele gera risco processual, ou seja, que
existem dados concretos de que ele fez algo que coloca em risco a ordem
pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei
penal. Esse indivíduo que não pode ficar em liberdade (e, nas
democracias, a liberdade é a regra) no curso do processo vai fazer jus a
um benefício (sempre uma exceção)? Soa absurdo.


Outra
questão: a delação de preso já condenado. Aqui também se faz presente o
componente de chantagem já mencionado. A voluntariedade está ainda mais
comprometida. Admitir delação de réu já condenado significa permitir
que alguns juízes apliquem penas desproporcionais como estratégia de
coação para produzir delações.


Mais
uma: o valor probatório da delação. Há quem diga, e há um voto do Min.
Lewandovsky nesse sentido, que a delação premiada não é “prova”, mas
“fonte de prova”, um caminho a ser seguido na busca de provas. Mas, não é
isso que a lei diz. Um dos parágrafos do art. 4º. da Lei 12.850/13 estabelece que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”.
Ou seja, a delação é tida pelo legislador como meio de prova, as
declarações são provas. Se o teor das delações for considerado “prova”,
tem-se que admitir que o Estado pode “comprar” uma prova. Pensem o
seguinte: o réu pode oferecer vantagens a uma testemunha para ela falar,
ainda que seja a verdade? Podemos negociar provas?


Questão
conexa com a última: o Estado pode exigir do Delator que produza provas
que comprovem o conteúdo da sua delação? Isso violaria a dimensão
probatória da presunção de inocência? Ou a presunção de inocência está
suspensa (relativizada/flexibilizada, segundo a dicção neoliberal) para o
delator?


Ainda sobre o valor
probatório do conteúdo da delação: uma outra prova oral, vale imaginar a
delação de um outro “agente colaborador”, é suficiente para justificar
uma condenação, já que não existiria “apenas as declarações de um agente
colaborador”? Isso para não se falar da evidente violação ao princípio
da legalidade estrita em diversos acordos que estão a ser celebrados em
todo o Brasil.      


Mas, o
que fazer em um mundo no qual desapareceram os valores (e os princípios
democráticos)? Como agir em um mundo no qual tudo é tratado como
mercadoria? Hoje, a reação possível encontra-se no campo ético-poético.


Para reagir ao subjetivismo criado pelo neoliberalismo, resta a redescoberta do outro e a poiesis:
ações marcadas pelo reconhecimento e compromisso com o outro, visto em
sua complexidade, como um ser com positividades e negatividades; e ações
que criam o novo, a criatividade posta a serviço da produção de uma
nova subjetividade, uma produção que não ecloda em si-mesmo, mas no
outro e permita a identificação de um comum pelo qual vale a pena lutar.


Rubens Casara é
Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ e
escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares,
Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

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