Significado de devido processo legal
Ricardo Lewandowski |
O conceito de devido processo legal aparentemente anda um pouco
esquecido entre nós nos últimos tempos. Cuida-se de uma das mais
importantes garantias para defesa dos direitos e liberdades das pessoas,
configurando um dos pilares do constitucionalismo moderno.
Tem origem na Magna Carta, de 1215, através da qual o rei João Sem
Terra, da Inglaterra, foi obrigado a assegurar certas imunidades
processuais aos seus súditos.
O parágrafo 39 desse importante documento, ainda hoje em vigor,
estabelece que "nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou
privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de
qualquer modo molestado [...] senão mediante um julgamento regular de
seus pares ou em harmonia com a lei do país".
Tais prerrogativas foram sistematicamente reconfirmadas pelos monarcas
subsequentes, sendo a expressão, "lei do país", substituída pela locução
"devido processo legal", em 1354, no Estatuto de Westminster.
Com isso, os direitos das pessoas passaram a ser assegurados não mais
pela mera aplicação da lei, mas por meio da instauração de um processo
levado a efeito segundo a lei.
De lá para cá, essa franquia incorporou-se às Cartas políticas da
maioria das nações democráticas, constando do art. 5º, LIV, de nossa
Constituição, com o seguinte teor: "Ninguém será privado da liberdade ou
de seus bens sem o devido processo legal."
Trata-se de uma moeda de duas faces. De um lado, quer dizer que é
indispensável a instauração de um processo antes da restrição a
quaisquer direitos.
De outro, significa que o processo precisa ser adequado, ou seja, não
pode ser simulacro de procedimento, devendo assegurar, no mínimo,
igualdade entre as partes, o contraditório e a ampla defesa.
O devido processo legal cresce em importância no âmbito penal, porque
nele se coloca em jogo a liberdade que, depois da vida, é o bem mais
precioso das pessoas.
Sim, porque o imenso poder persecutório do Estado, detentor
monopolístico do direito de punir, só se submete a temperamentos quando
observada essa garantia essencial.
Nunca é demais lembrar que o processo atualmente não é mais considerado
meio de alcançar a punição de quem tenha infringido as leis penais,
porém um instrumento de tutela jurídica dos acusados.
Mas não é só no plano formal que o devido processo legal encontra
expressão. Não basta que os trâmites, as formalidades e os
procedimentos, previamente explicitados em lei, sejam observados pelo
julgador. É preciso também que, sob o aspecto material, certos
princípios se vejam respeitados.
Nenhum valor teria para as partes um processo levado a efeito de forma
mecânica ou burocrática, sem respeito aos seus direitos fundamentais,
sobretudo os que decorrem diretamente da dignidade da pessoa humana,
para cujo resguardo a prestação jurisdicional foi instituída.
O direito ao contraditório e à ampla defesa fica completamente esvaziado
quando o processo judicial se aparta dos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade ou do ideal de concretização do justo.
Com efeito, uma decisão que atente contra a racionalidade, a realidade
factual ou os princípios gerais do direito universalmente reconhecidos,
embora correta do ponto de vista procedimental, não se conforma ao
devido processo legal substantivo.
Prisões provisórias que se projetam no tempo, denúncias baseadas apenas
em delações de corréus, vazamentos seletivos de dados processuais,
exposição de acusados ao escárnio popular, condenações a penas
extravagantes, conduções coercitivas, buscas e apreensões ou detenções
espalhafatosas indubitavelmente ofendem o devido processo legal em sua
dimensão substantiva, configurando, ademais, inegável retrocesso
civilizatório.
RICARDO LEWANDOWSKI é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP e ministro do Supremo Tribunal Federal
Nenhum comentário:
Postar um comentário