sábado, 23 de setembro de 2017

Evolução e civilização

 Evolução e civilização



Fernando Stoffels

 Algumas pessoas divulgam deduções de estranhas análises sobre a
civilização. Talvez sejam bem intencionadas, mas demonstram andar em
círculos esquivando – voluntariamente ou não – o cerne da questão.
Egoísmo, socialismo, altruísmo, capitalismo? Para contribuir, recordemos
um fator pouco mencionado e muito determinante, provavelmente até mais
que os demais. Como não existe civilização sem cultura, tema espinhoso,
começemos com uma analogia:

Abramos falando dos doutos galináceos. Nas lojas de animais estão à
venda pintinhos que podem ser levados para casa. Soltos no quintal,
fazem evidente que têm coeficiente intelectual muito baixo e, mesmo
assim, se nenhum dos muitos predadores evitar, crescerão. Se os pintos
forem criados com a mãe aprenderão mais rápido a bem conseguir-se a
comida, já que essa galinha revelaria onde encontrar o alimento. Assim
os pintos aprenderiam as manhas e rapidamente perceberiam que existe um
padrão de lugares preferidos pelas minhocas e passariam a dar
preferência a buscar nestes lugares. Eles podem percebê-los sozinhos, é
claro, mas é papel da mãe adiantar estes aprendizados.

Veja que se o pinto é criado em um pátio onde há cães, gatos e humanos,
ele se acostumará com todos estes e não fugirá mais que por sair do
caminho dos bichos maiores. Nós, por exemplo. Ele demonstrará uma
cultura de quintal. Mas um frango do mato, selvagem, caçado por todos os
elementos dali, que desenvolveu o hábito de estar atento e fugir,
sempre estressado é diferente: quando trazido para aquele mesmo quintal
habitado por frangos tranquilos, mesmo sendo o novo ambiente benigno,
fugirá. E rápido. Ele manifestaria uma cultura derivada das relações
diretas com a natureza. Notem que mesmo um animal de pouca inteligência
tem cultura. Digo cultura a todo conhecimento armazenado, principalmente
aquele transmitido entre as gerações.

Qual é a relação disso com os humanos? Foi descoberto que evoluímos de
um ancestral comum com os chimpanzés. Derivados dele vieram os
Australopithecus, vários deles e, depois de muito adaptarem-se através
de mutações sem direção pré estabelecida, surgiram os primeiros Homo e
depois nós, os orgulhosos Homo sapiens. Comecei com as galinhas para
finalmente supor que se elas transmitem cultura entre as gerações,
provavelmente – senão obrigatoriamente – todos estes primatas anteriores
também transmitiram algo de geração para geração, sem importar as
mutações intermediárias acontecidas. O primeiro Homo já tinha alguma
cultura vinda por herança dos hominídeos anteriores, adquirida a seu
tempo nas relações internas entre eles, bem como dentre eles com o
ambiente.

Mas vamos adiante, porque não? Quando os humanos começaram, quase sempre
se relacionaram com ambientes hostis. Percebendo que as agressões eram
muitas, talvez mortais e que os pequenos grupos familiares eram bastante
mais frágeis que os grupos maiores, admitiram socializar-se. Para que
isso fosse possível, abdicaram de varias das suas liberdades em pró de
recíprocas conveniências.

Mas que os agredia? Claro que o primeiro fator foi a própria natureza.
Muitos deviam ser os predadores que caçavam nossos avós. Mas também
outros humanos eram problemas. Todos os animais de hábitos como os dos
homens, os oportunistas, se aproveitam de qualquer descuido. Não é
característica somente dos homens: os porcos chegam a comer às ninhadas
uns dos outros. É de imaginar que para os nossos ancestrais, primitivos,
o que estivesse dando mole por aí seria para tomar. Importava muito
mais a relação de forças com o objeto desejado (favorável ou não), que
alguma ética que estipulasse certos e errados. Não havia o certo e o
errado: o que havia era o possível e o impossível. Então, para
viabilizarem aos grupos maiores, contiveram-se as mãos e começaram a
respeitar o que fosse alheio. É daí que vêm as leis, que são as normas
para as relações humanas com aqueles fatores que as afetem.

Deste modo, começamos a entender quais eram os objetivos dos primeiros
formadores de civilização: constituir grupos maiores, para cada vez mais
ser imunes aos agentes de agressão. Estes grupos buscavam domesticar o
ambiente para torná-lo cada vez mais amistoso. Já na atualidade, reparem
que o objetivo que demandava perda de liberdades – viabilizar a
ferramenta chamada de civilização – foi alcançado: domesticamos o
planeta e impusemos o nosso ponto de vista sobre a natureza. A razão
para a aceitação do nosso primeiro contrato social foi esta
domesticação. Mas não é certo que quando uma empresa é contratada para
alguma função, cumprido o seu objetivo se finda o contrato?

Querem mais? Ter cultura equivale a dizer ter valores. Se for derivada
de um ambiente agressivo, a cultura daí surgida será de valores
impositivos. Agressão é imposição e condiciona os agredidos no hábito de
impor! Ser capaz de impor não atesta inteligência. Uma cultura oriunda
da agressividade, quando se relacione com outra desacostumada a tantas
agressões, provavelmente prevalecerá. Terá mais tecnologias, conhecerá
mais formas de solucionar problemas existentes ou imaginários. Será
capaz de antecipar eventos mais eficazmente e será necessariamente mais
ardilosa. Principalmente ardilosa. Ser mais capaz para a dominação,
evidentemente, não confere nenhuma certeza de correção nos
procedimentos, note-se.

As culturas se acomodam e se pacificam quando, depois de desiludir-se
com a agressividade, mas constatando viver em ambiente capaz de prover
suas necessidades, percebem ser negócio de melhor economia administrar a
inteligência, condicionando seu uso para a paz. Então, se geram
ambientes tranquilos que, preservados de agressões, costumam dar origem à
tranquilidade tolerante de culturas com valores pacifistas. Pois a paz é
tolerante e condiciona à tolerância! Ser capaz de tolerar não atesta
estupidez. Será, provavelmente, uma cultura que: gastará menos recursos
em sua manutenção e não trará tantos problemas ambientais; que promoverá
menos guerras de conquista ou imposição de cultura e que, por isso
mesmo; tenderá a ser menos invasiva de direitos e de espaços públicos ou
privados, quer dos que a componham, quer não. Ser menos propenso a
dominar, evidentemente, não confere nenhum atestado de boa conduta no
proceder, note-se.

Note também que os valores surgidos das relações entre as civilizações e
entre elas e o ambiente não são necessariamente manifestos. Em verdade,
quase sempre não o são. São sutilezas básicas e condicionantes das
interpretações, estas sim evidentes. O que quer dizer que pessoas
nascidas e condicionadas por ambientes provenientes de culturas
anteriores, formadas entre restrições e rusgas – todas – terão a
tendência de manter suas expectativas desfavoráveis, tanto nas relações
com o ambiente (original ou colonizado), como com os seus semelhantes.
Ao contrario, basta ir aos lugares onde as pessoas estejam acomodadas,
para verificar através de uma breve consulta histórica, que foi o
passado dali que condicionou à paz.

Existem formas de proceder marcantemente dominadoras, que provocam
muitos desconfortos. As culturas presentes têm metodologias bem
eficientes em alcançar objetivos, mas têm este pernicioso vício de
origem: nasceram e continuam condicionadas por valores oriundos de
ambientes adversos. As suas ações são próprias para ambientes
conflitivos; pressupõe que os cenários de suas ações são ambientes
conflitivos; ignoram a possibilidade de conclusão do processo de
domesticação do ambiente e; preservam as condições conflitivas onde
sejam praticadas. Estas culturas têm também determinado o
recrudescimento dos problemas ambientais que padecemos.

Um agravante: mesmo havendo grande empatia, o pensamento de um não
poderá ser o pensamento de muitos. Onde poucos definem o pensamento
válido, a carência de diversidade aumentará a fragilidade, por carência
de versatilidade. É uma derivação do princípio de entropia.

Juntamos tudo isso num resumo? Uma cultura anterior à humanidade, gerada
pela sua subordinação à ambientes de alto potencial destrutivo,
adentrou a civilização; a humanidade – usando de sua cultura anterior –
associou-se em contrato de indivíduos que comprometeram suas liberdades
buscando o controle daquele ambiente adverso, através da metodologia
civilizatória; o processo foi confiado à administração de pessoas ou
grupos; transformado o ambiente, nasce a já civilizada cultura posterior
e se finda o contrato. Fim.

Fim?

Os administradores da civilização pactuada para intermediar entre a
selvageria e a domesticação ambiental, habituaram-se aos privilégios
conquistados por imposição deles. Domesticaram ao ambiente sim, mas
equivalendo todos os fatores que não participassem dos grupos dominantes
– humanos e não humanos; anteriores ou não – perpetuaram-se no desfrute
exclusivo das vantagens que constavam no contrato original. Como não
permitem a fase pós-civilizatória, onde as já bem-educadas liberdades
individuais retornariam aos legítimos donos – nós – nosso será o ônus de
demiti-los.

A civilização não é objetivo final, mas estado intermediário predecessor
de sabe-se lá qual organização pós-civilizatória, onde indivíduos
entendidos como tal viveriam – ou não – em sociedade por decisão
própria, no máximo das conveniências e potencialidades humanas.

As pessoas pagam por coisas que queiram possuir; não pagam para
manter-se endividadas. Os direitos que possuímos são créditos pessoais
contra débitos da organização social e, quando são naturais, são de
aquisição gratuita; os deveres sempre serão deficitários às pessoas em
pró da sociedade e carecem de acordo. Compram-se mais direitos;
dificilmente mais deveres. O que as pessoas pagam, elas creditam à
coletividade; nunca aos representantes dela. É equivocado pensar que
nossos antepassados optassem por entregar sua liberdade em paga de algo
que eles soubessem inalcançável. É equivocado pensar que aos nossos
antepassados não doesse confiar a administração de suas liberdades a
outros. É equivocado pensar que nossos antepassados não quisessem
retornar ao usufruto de sua liberdade. É equivocado pensar que, caso a
entrega da liberdade não desse retorno, um Homo sapiens normal não fosse
rebelar-se e pretender retornar a situação prévia de liberdade
selvagem. É equivocado pensar que não herdamos todas estas
características de nossos antepassados.

Tendemos naturalmente à liberdade. Em ambiente agressivo, a liberdade
será agressora. O ambiente domesticado condiciona ao exercício de uma
liberdade pacífica. Há informação e tecnologia para viver sem caciques.
Dominamos todos os fatores, mas ainda somos dominados pelos genes. Não
seria já o tempo de estendermos nossa dominação sobre eles e controlar
seus efeitos psico-sociais? ‘Tás com medo?

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