sábado, 21 de junho de 2014

Cinco derrotas e um lance decisivo - Carta Maior

Cinco derrotas e um lance decisivo - Carta Maior

Cinco derrotas e um lance decisivo

Da
ampliação da democracia depende a sorte das famílias assalariadas, a
repartição da renda e a cota de sacrifícios em um novo ciclo de
crescimento.

por: Saul Leblon




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Muitas vezes,  a janela  mais
panorâmica de uma época não se  materializa no indispensável esforço
conceitual para descortinar  a sua essência,  mas em um evento simbólico
catalisador.

O passo seguinte da história brasileira carece 
ainda dessa síntese que contenha as linhas de passagem para um novo
ciclo de desenvolvimento.

A  simplificação analítica,  o
simplismo  ideológico  são incompatíveis com essa sinapse entre o velho e
o novo, projetando-se mais por aquilo que dissipam do que pelo que
agregam.

Nenhum polo do espectro político está imune a essas
armadilhas. Mas até pela supremacia do seu poder emissor é o
conservadorismo que tem liderado o atropelo da tentativa e erro nesse
embate.

Durante meses,  por exemplo, o imperativo ‘não vai ter
Copa’ –e tudo aquilo que ele encerra de denuncismo derrotista--  reinou
soberano  na mídia como uma metáfora esperta  do ‘não vai ter
Dilma’.   

Quando os fatos desmentiram a pretensa equiparação do
Brasil a um Titanic  -- a Copa ,independente da seleção, é um sucesso
de público, de infraestrutura e de qualidade esportiva--   partiu-se
para algo mais  explícito.

O camarote vip do Itaú  –o banco
central do conservadorismo – entrou em cena para mostrar os sentimentos
profundos da elite em  relação ao país.

Repercutiu,  mas não pegou.

Embora
o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo
bélico, a ponto de hoje contagiar setores populares, como admite  --e 
sobretudo adverte--   o ministro Gilberto Carvalho (leia nesta pág.),   o
fato é que esse trunfo conservador  não reúne a energia necessária
para  inaugurar  uma nova época.

A grosseria dos finos  exala, antes,  seu despreparo  para as tarefas do futuro.

Não quaisquer tarefas.

O
país se depara com uma  transição de ciclo econômico marcada por uma
correlação de forças  instável,  desprovida de aderência institucional ,
ademais de submetida à determinação de um  capitalismo global  avesso
a  outro ordenamento  que não  o vale tudo dos mercados.

Um
desaforo tosco é o que de mais eloquente as ‘classes altas’ tem a dizer
sobre a sua capacitação para lidar com esse supermercado de
encruzilhadas históricas.

Não é o único senão.

Nas últimas
horas ruiu também a simbologia conservadora da retidão heroica e
antipetista,  atribuída  à figura de Joaquim Barbosa.

Na última 3ª feira, o presidente do STF  jogou a toalha respingada de ressentimentos, ao abandonar  a execução da AP 470.

Não sem antes  grunhir, em alemão, o menosprezo pelas questões mais gerais da construção da cidadania no país.

‘Es ist mir ganz egal' , sentenciou sobre as cotas reclamadas por negros e índios no Judiciário.

'Para mim é indiferente; não estou nem aí’.

Esse, o herói dos savonarolas de biografia inflamável.

Seria apenas o epitáfio de um bonapartismo  destemperado, não fosse, sobretudo,  a versão germânica da  indiferença social.

A
mesma  inscrita no jogral dos  que se avocam à parte e acima daquilo
que distingue uma nação de um ajuntamento humano: a pactuação
democrática de valores e projetos que selam um destino  compartilhado.

O particularismo black bloc enfrenta agora seu novo revés no terreno da inflação.
Seja
pela eficácia destrutiva da maior taxa de juro do planeta (em termos
nominais o juro  brasileiro só perde para o da Nigéria), seja pelo
espraiamento das anomalias climáticas  no mercado de alimentos, o fato é
que os principais índices de inflação desabam.

E com eles a bandeira ‘popular’ de Aécio e assemelhados.

Mas há uma variável ainda mais adversa ao conservadorismo no plano  da economia política.

O
fato de o país viver um quadro de pleno emprego dá ao campo
progressista  um trunfo inestimável na negociação de um novo ciclo de
crescimento.

Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em
filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço. Outra, faze-lo  em
um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a
população economicamente ativa nos últimos anos.

O conjunto
fragiliza um  certo fatalismo com devotos dos dois lados da polaridade
política,   que encara as eleições como uma formalidade incapaz de
alterar  o  calendário do arrocho, com o qual o país teria um encontro
marcado  após as eleições.

Tudo se passa, desse ponto de vista,
como se houvesse uma concertación não escrita  à moda chilena que
tornaria irrelevante o titular da Presidência, diante dos  limites 
impostos  pela subordinação do Estado  aos  imperativos dos mercados
local e global.

É essa, um pouco,   a aposta  da candidatura
Campos, que se oferece à praça e à  banca como a cola ambivalente  capaz
de dissolver os  dois lados da disputa em um tertius eficiente e
confiável.

O fato de ter fracassado até agora  não implica o
êxito efetivo  do campo progressista em se libertar  da 
indiferenciação   que  rebaixa o papel da democracia na definição do
futuro.

Os desafios desse percurso  não podem ser subestimados.

De
modo muito grosseiro, trata-se de modular um estirão  de ganhos de
produtividade (daí a importância  de se fortalecer seu principal núcleo
irradiador, a indústria, ademais da infraestrutura e da educação)  que
financie  novos degraus de acesso  à cidadania plena.

A força e o
consentimento necessários para conduzir  esse  ciclo --em uma chave que
não seja a do arrocho--  requisitam um salto de discernimento e
organização social  que assegure   o mais amplo debate sobre metas,
prazos, compromissos, concessões, conquistas  e  salvaguardas.

Não se trata, portanto,  apenas de sobreviver  à convalescência do modelo neoliberal.

O
que está em jogo é erguer  linhas de passagem para um futuro
alternativo  à lógica do cada um por si, derivada  de determinações
históricas devastadoras  que se irradiam da supremacia global das
finanças desreguladas, para todas as dimensões da vida, da economia e da
sociabilidade em nosso tempo.

A dificuldade de se iniciar esse
salto  advém, em primeiro lugar, da inexistência de um espaço
democrático de debate  em que os interesses da sociedade  deixem de
figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo da restauração
neoliberal.

Cada um por si, e os mercados por cima de todos,  ou a árdua construção de um democracia social negociada?

É em torno dessa disjuntiva que se abre a  janela mais panorâmica da encruzilhada brasileira nos dias que correm.

Da
ampliação da democracia participativa depende o futuro dos direitos
trabalhistas, a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e
a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo
ciclo de crescimento.

É essa moldura histórica que magnifica a importância da Política Nacional de Participação Social anunciada agora pelo governo.

Para
que contemple as grandes escolhas  do nosso tempo, porém, é  crucial
que o governo não se satisfaça em  tê-la apenas como um aceno de
participação ou um ornamento  da democracia.

Os desafios são
imensos. Maior, porém, é a responsabilidade do discernimento  que sabe
onde estão as respostas e tem  o dever de validá-las.

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