quinta-feira, 19 de junho de 2014

Folha de S.Paulo - Opinião - As duas portas do SUS - 19/06/2014

Folha de S.Paulo - Opinião - As duas portas do SUS - 19/06/2014







Octavio Ferraz e Daniel Wang
As duas portas do SUS
A judicialização da saúde está criando um SUS de duas portas:
uma para aqueles que vão ao Judiciário e outra para o resto da população
A vida não tem preço!, bradam os defensores da mais recente decisão da
Justiça brasileira obrigando o Estado a custear tratamento de saúde no
exterior. O caso, como todos os outros nesta seara, é trágico.



Um bebê de cinco meses cuja única esperança, ainda que tênue, é uma operação
de altíssimo custo. Poucos hospitais brasileiros têm condições de realizar o
complexo procedimento (transplante multivisceral), ainda experimental, mas
nenhum deles entende que o paciente se enquadre nos critérios exigidos no Brasil
para que a operação tenha mínimas chances de sucesso. A última opção da família
é levar o bebê aos Estados Unidos, onde um cirurgião se dispõe a realizar o
procedimento. O preço: R$ 2 milhões.



Para muitos, a questão é simples. Como "a vida não tem preço" e a
Constituição Federal garante a saúde como um direito fundamental e um dever do
Estado, o governo deve gastar o que for necessário para tentar salvá-la.
Negando-se a cumprir esta obrigação, cabe ao Judiciário forçá-lo, salvando
assim uma vida posta em risco pelo "negligente",
"incompetente" e "corrupto" Estado brasileiro. Seria ótimo
se o problema fosse tão simples assim.



De fato, a vida não tem preço no sentido de um valor monetário de mercado.
Não se pode comprar ou vender uma vida. Mas o cuidado à saúde tem preço, e
muito alto. Médicos, enfermeiras e auxiliares têm salários. Remédios, próteses,
exames, cirurgias, hospitais, ambulâncias custam caro. Como o presente caso
demonstra, quando estão em questão novas tecnologias ou tratamentos experimentais,
esses custos podem aumentar exponencialmente.



O Estado brasileiro gasta pouco com o sistema de saúde em comparação com
outros países, mas nem que dobrasse ou triplicasse seus gastos e acabasse da
noite para o dia com a corrupção e a ineficiência, poderia fornecer a toda a
população o melhor e mais moderno tratamento possível disponível. Nenhum país
poderia.



Nesse contexto de custos altos e crescentes e de recursos limitados, o dever
do Estado é alocar os recursos disponíveis de forma equitativa à população.
Essa tarefa é sem dúvida das mais inglórias que existem, não apenas pela
tragicidade das escolhas, mas também pela escassez atual de critérios claros,
consensuais e objetivos para realizá-la. A judicialização da saúde nos moldes
em que vem sendo praticada no Brasil não resolve nem ajuda a resolver esse
complexo problema, muito pelo contrário. De acordo com estimativa conservadora,
foram gastos quase R$ 1 bilhão com judicialização da saúde no ano passado. A
estimativa é conservadora porque não inclui, por falta de dados, o gasto dos
municípios, de 17 Estados e do Distrito Federal. O dinheiro para o cumprimento
das decisões não sai do bolso do corrupto ou da redução da ineficiência, mas do
orçamento disponível para o cuidado de saúde de toda a população.



Não se coloca em questão, evidentemente, o valor da vida e da saúde do bebê
ou de qualquer outro cidadão brasileiro que entre na Justiça para pleitear
tratamento médico. Mas esse mesmo valor, e os direitos correspondentes,
aplicam-se à vida e à saúde de toda a população. Negar um tratamento não
significa necessariamente ignorar o valor da vida e da saúde do demandante, mas
dar-lhe o mesmo valor que à vida e à saúde de todos que também dependem do
sistema.



A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas
portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem
preço" e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para
satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que,
inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo
redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra
porta.



O argumento daqueles que defendem incondicionalmente a judicialização como
simples proteção da vida deve portanto ser adaptado para exprimir seu
verdadeiro sentido: "A vida não tem preço, mas a vida de alguns tem menos
preço que a vida de outros".



OCTAVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 42, é professor de direito na Universidade
de Warwick (Reino Unido)



DANIEL WEI LIANG WANG, 30, faz pós-doutorado na London School of
Economics and Political Sciences (Escola de Economia e Ciência Política de
Londres), onde leciona direitos humanos

 


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