sábado, 28 de junho de 2014

Folha de S.Paulo - Cotidiano - Piketty e o direito - 28/06/2014

Folha de S.Paulo - Cotidiano - Piketty e o direito - 28/06/2014







Oscar Vilhena Vieira
Piketty e o direito
A desigualdade não deve ser vista como um acidente de percurso decorrente de
agentes econômicos



Ao final da tarde, quando os grandes magazines franceses fecham as suas portas
para milhares de consumidores das mais diversas partes do mundo, suas marquises
passam a servir de abrigo a um grupo também cosmopolita, só que agora de
mendigos e moradores de ruas.



A proximidade física com uma nova desigualdade ainda não naturalizada, como
nas grandes cidades do hemisfério sul, pode estar potencializando o impacto do
contundente e impressionantemente bem documentado "O Capital no Século
21", do economista francês Thomas Piketty.



Não ouso me aventurar nas tertúlias econômicas provocadas pelo livro. A obra
de Piketty, no entanto, tem muito a dizer sobre a relação entre direito e
desigualdade.



Para o autor o regime de propriedade e o sistema tributário, que o conforma,
têm um papel determinante nos padrões de acumulação entre os diversos setores
da economia. Ou seja, é o direito que, em grande medida, determina se a riqueza
advirá mais do mérito e da engenhosidade ou decorrerá em maior grau do capital
hereditariamente acumulado.



De acordo com Piketty o desenho adotado pelas instituições do capitalismo
maduro tem gerado, necessariamente, maiores taxas de retorno para o capital do
que de crescimento. A consequência é que a renda vai cada vez se concentrando
mais. Dessa forma, a desigualdade não deve ser vista como um acidente de
percurso decorrente da livre interação de agentes econômicos, mas sim como
consequência de escolhas institucionalizadas juridicamente.



Mesmo a adoção de uma constituição generosa, como a brasileira, que
estabelece vários mecanismos de redistribuição, por intermédio de direitos
universais à educação, à saúde ou à assistência social, pode ser neutralizada
por um sistema tributário altamente regressivo. Basta lembrar que cerca de 45%
da renda das famílias brasileiras que ganham menos de 2 salários mínimos volta
para o Estado por força de diversos tributos. Já para as famílias que recebem
mais de 30 salários mínimos, esse valor gira em torno de 25% da renda. Em
resumo, quanto menos se ganha mais se paga.



No Brasil, além da regressividade tributária, falta transparência fiscal, o
que impediu ao próprio Piketty investigar as entranhas de nosso sistema de
distribuição de riqueza.



Há também muitos outros mecanismos que favorecem a concentração da renda,
como empréstimos com juros subsidiados para as empresas chamadas de campeãs
nacionais, discricionariamente escolhidas pelo BNDES, associados a
generosíssimas taxas de juros que remuneram o capital voltado a cobrir os
gastos públicos. Estima-se que os gastos com tais juros sejam 10 vezes maiores
do que os realizados com a Bolsa Família.



As consequências do aprofundamento da desigualdade são desastrosas por
múltiplas razões. Conforme explica Piketty, um dos seus efeitos mais perversos
é a maneira pela qual a desigualdade favorece a captura dos mecanismos de
representação democráticos pelos interesses de uma minoria privilegiada,
fazendo da cidadania um perigoso simulacro.



No mesmo sentido, poderíamos dizer que a erosão do tecido social, provocada
pela profunda e persistente desigualdade, gera necessariamente uma forte
distorção na capacidade do Estado em aplicar a lei de forma justa e imparcial,
como a experiência brasileira tem reiteradamente demonstrado.

 


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