domingo, 22 de junho de 2014

ISTOÉ Independente - VOTO E CRIMINALIZAÇÃO

ISTOÉ Independente - VOTO E CRIMINALIZAÇÃO


Paulo Moreira Leite

VOTO E CRIMINALIZAÇÃO

Campanha permanente para criminalizar a política teve um efeito óbvio: diminuiu a disposição de ir às urnas



Diz a lenda que, ao mastigar animais aprisionados em suas mandíbulas, os crocodilos costumam verter lágrimas pelos olhos.
Não sei se é verdade.
Mas, ao registrar a falta de
interesse do cidadão comum, em especial da juventude, pela política,
grandes meios de comunicação e pregadores de ar sisudo e discurso
moralista adoram exibir uma reação sentimental – e lacrimejar como esses
répteis gigantescos, o mais próximo parente dos dinossauros sobre a
face da Terra.
 As lágrimas
lendárias dos crocodilos pretendem sugerir que eles não tem a menor
responsabilidade pelo sofrimento de suas presas – e até sofrem por seu
destinos. O mesmo ocorre com o desinteresse pela política.   
Os números são reais: 26% de nossos eleitores dizem não ter nenhum interesse pela política; 29% dizem que tem pouco interesse.
Outro dado relevante: só 25%
dos jovens entre 16 e 17 anos, para quem o voto não é obrigatório, estão
registrados para votar. Em 2006, o número era 39%. 
 O aspecto
especialmente curioso desses números é outro. Diz respeito aos
benefícios reais que a política, sob regime democrático, tem feito ao
país nos últimos anos.  
Do ponto de vista da maioria
dos brasileiros, dificilmente será possível encontrar um período da
história em que  grandes parcelas da população  puderam obter melhorias
tão importantes em sua existência -- através do voto e de seus
representantes eleitos. Esqueçamos, por um momento,  que estamos num ano
de eleição presidencial, onde cada menção positiva é vista como
suspeita. Vamos falar de fatos objetivos.
Alvo de crítica universal pelo
perfil desigual de sua distribuição de renda, hoje o Brasil é objeto
permanente de elogios – pelos esforços realizados para combater essa
situação, seja através do Bolsa Família, da lei do salário mínimo, de
programas quje beneficiam a população pobre e negra. O governo mantem um
programa de habitação popular cujos méritos são reconhecidos pelos
adversários mais duros. Os pobres nunca tiveram acesso tão amplo ao
ensino superior como agora. Os juros estão salgadíssimos mas o crédito
popular nunca foi tão amplo, permitindo a expansão do consumo num padrão
impensável há uma década. O paraíso de uma sociedade igualitária está
longe, muito longe, e talvez nunca seja alcançado. A saúde pública segue
um drama. A educação também. Mas é preciso ser desonesto para negar que
ocorreram melhorias surpreendente, num prazo relativamente curto.
Num país que passou duas
décadas ouvindo elogios nostálgios ao crescimento economico obtido
durante o regime militar, os números dos últimos anos lavaram a alma de
quem tem amor pela democracia. Não por acaso, um Ibope de 2010 mostrava
que, pela primeira vez em muitos anos, a maioria dos brasileiros
considerava que a eleição era uma forma eficiente de defender seus
interesses.
Mesmo assim, em 2014 o desencanto com a atividade política está aí, nas conversas de muitas pessoas.
Por que?
Vamos combinar: deixando de
lado nostalgias impressionistas, nunca se demonstrou  que os políticos
de hoje são moralmente  piores que os “de antigamente”. Não há
escandalômetro confiável a respeito de nossa vida pública. Em nenhum
momento de sua história os gastos públicos receberam controles tão
apertados. As investigações e punições atingiram um nível de rigor tão
intenso que chegam a se tornar um obstáculo a investimentos produtivos. 
Nesta situação, a explicação
não se encontra na atividade política, em si, mas na forma como ela é
vista e apresentada aos brasileiros, na ideologia que encobre cada
narrativa, cada episódio, cada história. As pessoas estão convencidas de
que a política nunca esteve tão contaminada por práticas condenáveis. 
Isso não acontece por acaso.
Esta  não foi, apenas, uma década onde a população colheu benvindos
benefícios e melhorias, inseparáveis do exercício do voto e da
liberdade.
Também foi aquela em que, por
motivos difíceis de aceitar mas fáceis de compreender, o país assistiu a
uma campanha permanente de ataque e criminalização aos políticos e ao
regime democrático. É possível encontrar panfletos da conservadora UDN
que denunciavam  a “crise moral” do país na campanha presidencial de
1950. É sempre bom lembrar que o golpe de 64 teve como lema declarado o
combate a subversão e a corrupção. Mas a partir de 2006 o país entrou
num curso único em sua história para desmoralizar a atividade política,
enfraquecer os políticos e  criminalizar a democracia. Não por acaso, o
interesse dos jovens sofre uma queda importante neste período. Contra
39% registrados para votar em 2006, apenas 32% fazem o mesmo em 2010.
Uma queda superior a 20%. 
Numa imensa dificuldade para
retornar ao poder através do voto, a oposição contou com auxílio
assumido dos meios de comunicaçao para investir a fundo no atalho da
judicialização. Pouco importava se, no meio do caminho, fosse necessário
fazer uns poucos mortos e feridos entre  aliados de segunda linha, que
teriam de ser  sacrificados, cuidando-se para que fosse da  forma menos
dolorida possível.
O essencial era recuperar o
poder de mando. Atingir o núcleo político responsável pelas mudanças,
concentrado no Partido dos Trabalhadores, mesmo que elas estivessem
longe de promover qualquer alteração grandiosa. Era preciso quebrar essa
força organizada, construída de forma lenta e desigual desde a luta
pelo fim da ditadura militar. Em vários países, essa intervenção se fez
pela cooptação de lideranças que abandonaram seus compromissos de
origem. No Brasil, isso não aconteceu, apesar de recuos importantes em
relação a diversas bandeiras históricas, além de alianças e parcerias
especialmente problemáticas no ofício de governar.
Mas, já que não foi possível
cooptar a maioria dos quadros mais importantes  para atuar a favor dos
antigos inimigos, tornou-se necessário colocar uma parcela dos líderes e
dirigentes fora de combate, desmoralizada, atrás das grades, na cadeia,
sendo tratados sem o menor respeito por direitos elementares,
retratados em tom odioso como bandoleiros, inescrupulosos, mercenários –
no ato final de um circo com coro, orquestra, horário nobre na TV --
entre as novelas -- e animais muito selvagens, caninos sempre à mostra e
apetite insaciável, sem comparação com os próprios crocodilos
lacrimejantes. 
Ao voltar-se contra dirigentes
do Partido dos Trabalhadores, a criminalização desgastou a legenda que
desde seu nascimento acumulou uma posição diferenciada junto a maioria
da população, especialmente as camadas subalternas. Distantes da vida
partidária tradicional, era no PT que uma parcela sempre significativa
-- em torno de 30% dos eleitores -- sempre viu  um compromisso mais
firme na luta contra as injustiças e privilégios. Esse desgaste ajudou a
formar, também, uma camada maior de indiferentes ao voto e às disputas
políticas. 
Nesse universo, evitando
 debates e contradições desfavoráveis, os meios de comunicação
suprimiram a cobertura política da política. Num país que deve ter
orgulho de seus cientistas sociais, o debate de ideias foi monopolizado
pela economia de mercado, sem permitir abertura para visões opostas e
contraditórias – que podem refletir interesses opostos e contraditórios,
também. Os protagonistas desse tempo não querem mudanças. Quem acusar,
condenar, prender – primeiro passo para a glorificação e o exercicio do
poder de Estado sem necessidade de atrair, conquistar e convencer o
povo, em nome de quem emanam todos os poderes da República.
Este é o país onde a vontade de votar diminui, eleição após eleição. Poderia ser diferente?

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