'Conluio antidistributivo' puniu Dilma, e campanha será mais radicalizada,
diz sociólogo
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULO
" no Brasil que puniu a presidente Dilma quando ela tentou reduzir as
taxas de juros e desvalorizar o real. Empresários compensaram queda no
rendimento de aplicações com alta de preços, impedindo uma guinada na política
econômica.
A análise é do sociólogo Adalberto Moreira Cardoso, 52, diretor do Instituto
de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que
inclui no "conluio", parte da classe média rentista e o setor de
serviços. Para ele, a campanha eleitoral deste ano será radicalizada, e as
mídias sociais alimentam a animosidade.
Doutor pela USP e autor de dez livros –entre eles "A Construção da
Sociedade do Trabalho no Brasil" (FGV, 2010) e "Ensaios de sociologia
do mercado de trabalho brasileiro" (FGV, 2013)–, Cardoso enxerga Dilma
como nome mais forte. Mas, ao contrário do que ocorreu com Lula, prevê que a
presidente "não vai poder surfar acima das brigas entre candidatos. Ela
vai ser o alvo principal dos ataques".
A seguir, trechos da entrevista concedida por telefone, do Rio de Janeiro.
Folha - Qual sua visão do processo eleitoral?
Adalberto Cardoso - A campanha será mais radicalizada, muito violenta.
Não só em relação aos ataques pessoais entre candidatos, mas também nas ruas.
Várias cidades há disputas muito intensas pelo poder. Pela primeira vez em 12
anos, a oposição está vendo de fato uma chance de voltar ao poder. No caso do
PSB, de chegar ao poder. Ambos estão agindo de maneira muito dura na oposição.
As novas mídias sociais estão permitindo o afloramento de um radicalismo
raivoso por parte da população. Ele sempre existiu, mas antes não parecia. Nas
redes sociais isso fica muito explícito. Isso alimenta uma animosidade entre os
contendores muito pouco saudável para a dinâmica da democracia. As redes
sociais não têm contribuído para formar opinião, mas para radicalizar as
opiniões que as pessoas já têm. Isso é ruim numa dinâmica em que estarão em
questão os horizontes da política, o futuro que queremos. Essa eleição
reinaugura a disputa política propriamente dita. O PSDB, que agia de maneira
errática nas últimas três eleições, está claramente com um projeto mais
definido, mais conservador, mais à direita, definindo um eixo de retomada de um
projeto que foi bem-sucedido no primeiro mandato de FHC. Mas que fracassou no
segundo mandato. O que o Aécio tem afirmando é o projeto do segundo mandato de
FHC. O primeiro foi mais claramente neoliberal, com políticas de abertura da
economia. Todo o receituário neoliberal, com muita intensidade, foi
implementado. No segundo, deu-se um passo adiante, do meu ponto de vista ainda
mais equivocado. O primeiro mandato teve a virtude de ter controlado a inflação
a um preço muito alto, que foi o do emprego formal, industrial. O Brasil entrou
numa rota de desindustrialização a partir de 1995, 1996, que só se aprofundou
com o tempo. Chegou-se ao final do segundo mandato com 40% de emprego formal. O
emprego industrial, que tinha atingido 22%, foi para 11% da PEA. Houve uma
desindustrialização dos empregos e um aumento brutal do desemprego. O custo
social das políticas adotadas foi muito alto. As pessoas se esquecem de que o
Brasil estava numa rota de dolarização quando Lula ganhou a eleição. O projeto
de FHC era de dolarização da economia. Armínio Fraga já tinha transformado
quase 40% da nossa divida interna em nominada em dólar, expondo profundamente a
economia às intempéries internacionais.
O projeto Aécio é semelhante ao de FHC?
É de voltar às políticas de FHC. Seu possível ministro da Fazenda é Armínio
Fraga, um dos responsáveis pela grande fragilidade do Brasil no segundo mandato
do FHC. Ele colocou o Brasil numa rota de dolarização da economia num momento
em que a dolarização já tinha destruído a economia da Argentina. Ele está fazendo
o programa do PSDB, baseado nas políticas neoliberais de financeirização da
economia.
Qual o significado da candidatura de Eduardo Campos?
É uma oposição que saiu do governo, uma candidatura de oportunidade. Com a
saída de Lula da disputa, ele se sentiu livre para, entre aspas, trair o seu
aliado principal. Entre aspas porque a lealdade dele era em relação à pessoa de
Lula, não ao partido. Uma aliança típica das oligarquias no Brasil. Ele, como
filho de oligarca, agiu como tal. É perfeitamente legitimo. Foi um movimento
oportunista, assim como foi oportunista a aliança com Marina Silva, com quem
ele não tem a menor afinidade ideológica.
Ideologicamente, como essa candidatura se posiciona?
Campos ainda não disse a que veio em termos de seu projeto de governo. Diz que
podemos fazer mais e melhor, que vamos dar continuidade ao governo Lula e
esquecer Dilma, como se a Dilma tivesse traído as diretrizes de Lula. É como se
estivesse reafirmando sua fidelidade a Lula. Não há outra possibilidade a
Campos do que partir para ataques pessoais. A questão da corrupção vai surgir
de novo. Faz parte das campanhas em todo o mundo. A corrupção, infelizmente,
vai ser de novo a tônica do debate eleitoral no Brasil. Isso vai respingar para
cima de Lula e dos governos anteriores. Campos não tem projeto de governo. Vai
ser difícil para ele quando a Dilma começar a mostrar os resultados de sua
administração –e ela tem muito para mostrar. Ele vai ter que apresentar um
programa com alguma credibilidade. De um lado da oposição estão André Lara
Resende e Eduardo Giannetti. De outro, Armínio. Vai ficar claro é que existe um
projeto neoliberal e de aliança com o sistema financeiro do lado da oposição
nas duas candidaturas. De outro lado, há uma candidatura mais voltada para o
neodesenvolvimentismo, que de alguma forma olha para a produção, para a
economia real.
Se essa campanha vai ser mais radicalizada, como isso vai acontecer do
lado do governo?
Todas têm sido muito radicalizadas. A única que não, foi em 2002, quando o PT
apresentou um programa alternativo e o governo que estava saindo era muito mal
avaliado. Não foi possível bater na pessoa de FHC. Houve uma certa divisão de
trabalho na campanha, e ficou para o Ciro Gomes bater. Isso permitiu que Lula
surfasse acima das disputas pessoais. Isso não vai ser possível nessa campanha.
Dilma não vai poder surfar acima das brigas entre candidatos. Ela vai ser o
alvo principal dos ataques. Eduardo Campos sabe que a única possibilidade de ir
para o segundo turno é destruir Aécio. O inimigo de Campos não é Dilma; é
Aécio. Dilma estará no segundo turno, se houver segundo turno. A campanha ainda
não começou. Hoje tudo indica que haverá um segundo turno. A oportunidade única
de Campos é impedir que Aécio mantenha a intenção de voto que ele tem hoje.
Haverá uma luta no campo da oposição.
Mas ambos aparecem muito juntos, numa relação de boa vizinhança, não?
Não. Marina já disse que o projeto deles não tem semelhança com o PSDB.
Ela está correta?
Ela tem um projeto que é diferente do de Campos. Ela tem uma visão da política
que é mais comunitarista, não individualista, que é o caso de Aécio e do PSDB em geral. Ela tem um viés
conservador de outro tipo. É um conservadorismo voltado para a vida
comunitária, contra a ideia de financeirização, de subordinação do Brasil ao
capital financeiro internacional. Ela tem um projeto; Campos não tem. Ele
estava costurando uma aliança com o agronegócio quando Marina foi para o
partido dele e isso foi desfeito. Então, Aécio se colocou como candidato do
agronegócio. Ela tem uma diferença em relação ao PSDB. Ela foi oposição ao PSDB
a vida inteira e continua sendo. Do ponto de vista dela, não tem aliança
possível com o PSDB. Uma aliança entre os dois partidos que possam marchar
juntos para destruir a Dilma no segundo turno dificilmente vai acontecer por
causa de Marina.
O que pode acontecer se o segundo turno for entre Aécio e Dilma?
O mais provável é que haja um apoio à Dilma do que a Aécio. Campos está muito
mais próximo desse campo da coalizão de governo do que do PSDB. Ele tem se
mostrado um político muito pragmático.
O sr. fala que a candidatura Dilma é neodesenvolvimentista, mas o
crescimento do país é baixo e a desindustrialização segue.
Crescimento baixo depende do parâmetro. Se olhar para a China, é baixo. Mas se
olhar para a América Latina, o Brasil está crescendo na média. O Brasil não
está sozinho no mundo. É um erro comparar o Brasil com a China, que é a segunda
economia do mundo, que é um regime autoritário.
Mas o governo é desenvolvimentista?
O governo é de uma coalizão, na qual o PT tem a liderança. Implementar
políticas com esse Congresso não é fácil. O executivo tem sido refém de uma
política que tem troca de favores no Congresso. Por causa do tempo de
televisão, que é um grandes elementos da dinâmica política do Brasil. O tempo
de televisão é a grande moeda em ano eleitoral e no ano anterior e anterior. Há
políticas que não podem ser implementadas por haver uma base política
conservadora. O governo chegou tarde à conclusão de que a economia brasileira está
profundamente fragilizada. Do ponto macroeconômico está bem, com sinais de que
pode piorar depois. A economia do país foi fragilizada ao longo dos últimos 20
anos.
O sr. pode explicar melhor?
Em parte por conta da âncora cambial dos dois mandatos de FHC. Ainda que tenha
que tenha acabado em 1999, ela retornou via taxa de juros, uma das maiores do
planeta. O dólar chegou a bater R$ 3. Lula restituiu a âncora da economia
brasileira via taxa de juros. São 20 anos de política que Dilma tentou reverter
quando começou a baixar de maneira consistente a taxa de juros. Dilma foi
punida pelo mercado, inclusive pela indústria.
Punida como?
Quando a taxa de juros chegou num patamar que todos, inclusive a Fiesp,
saudaram como uma taxa civilizada, juros reais de 2%, todo mundo começou a
aumentar preço. Porque o empresariado no Brasil deixou de investir quando a
taxa de juros ficou muito baixa, ao contrário do que acontece no mundo inteiro.
No mundo inteiro, quando a taxa de juros está muito alta, os empresários não investem.
No Brasil é o contrário: os empresários investem com taxa de juros alta, porque
ela reduz o risco do investimento. Por incrível que pareça! Quem financia o
investimento no Brasil é o BNDES, o investimento é com juros subsidiados. Com
taxa de juros alta, os empresários podem ganhar no mercado financeiro. O que
ajuda a segurar preço não é o fato de que a demanda é contida pelos juros
altos. Porque os empresários compensam os preços das mercadorias ganhando no
mercado financeiro. Não é preciso aumentar preço: eles estão ganhando em outro
lugar. Quando a taxa de juros cai, a primeira atitude do empresário que começa
a perder dinheiro no mercado financeiro é aumentar preço. A economia é
oligopolizada. Em todos os setores importantes, três ou cinco empresas ou
grupos têm mais de 50% do mercado. Como essa profunda oligopolização, os
grandes grupos têm o poder de arbitrar preços. Dilma foi punida fazendo o que
todo mundo pediu: redução consistente de taxa de juros e aumento consistente do
câmbio, desvalorização do real. Quando o câmbio bateu em R$ 2,4 e os juros em
7,5% todo mundo reagiu contra. Há agentes econômicos com grande poder de veto a
medidas que representam, do ponto de vista dos rentistas, perda de renda. Esses
agentes não permitiram dólar alto e juro baixo.
Há um pacto pró juro alto no Brasil?
Existe um conluio antidistributivo no Brasil. Reúne as classes médias, que
querem juro alto para garantir sua aposentadoria, sua viagem internacional,
para garantir dólar baixo. Interessa a essa classe media e parte dela está
contra o governo, é conservadora. Vai votar contra, apesar de ter ganhado muito
com a taxa de juros. Essa classe média é antidistributiva, é contra as
políticas do tipo Bolsa Família, de melhoria da vida dos mais pobres. A
indústria reclama da taxa de juros, mas, quando a taxa de juros cai, responde
com aumento de preços. O resultado é aumento de preços, não investimento. Aí é
o aumento da taxa de juros para conter a inflação. O BC não tem outra saída a
não ser aumentar os juros. O setor de serviços é o maior responsável pelos
aumentos de preços. São três agentes muitos poderosos: tem consumidores, uma
certa fatia de rentistas que é grande, de 25% a 30%, que ganha com as taxas de
juros dos fundos públicos; têm a indústria e o setor de serviços. Quando se
aumenta a taxa de juros, se transfere diretamente recursos do Tesouro nacional
para esses agentes. A taxa de juros é fruto de uma luta política entre agentes
econômicos para o aceso dos fundos públicos no Brasil. O governo percebeu a sinuca
de bico em que estamos metidos decorrente de muitos anos de taxas de juros
muito altas e inflação baixa –para os padrões brasileiros.
Como esse conluio pode ser enfrentado?
A indústria brasileira foi muito fragilizada. A China ficou 20 anos com o
câmbio muito desvalorizado e todo mundo foi para lá. Antes tinha sido o Brasil,
o México. Isso não tem mais volta, é uma configuração da economia mundial. O
Brasil perdeu, mantendo muito valorizada sua moeda nesse período. O processo é
de longo prazo. A China levou 30 anos para chegar onde está. O Brasil tomou
outro caminho e não se reverte uma política assim em pouco tempo. A política de
redução de juros e desvalorização do câmbio durou um ano e meio com Dilma, e
ela foi punida pelos agentes que são contra essa guinada. Isso não quer dizer
que essa guinada não possa ser dada. Ela provou do custo de dar essa guinada.
Poderia ter tentado bancar isso politicamente.
Por que ela não fez isso?
Porque parte do PMDB também é rentista, parte da base do governo também é rentista.
A única pessoa que conseguiu uma maioria estável no Congresso foi FHC, no
primeiro mandato. Foi um rolo compressor. No segundo mandato, não foi possível.
Houve uma coalizão forte nos dois primeiros anos de lula. Depois do mensalão,
acabou. Lula ficou mais dependente do PMDB. Dilma continua com uma base muito
fragmentada, sem unanimidade no PMDB e inclusive no PT. Numa situação de grande
fragmentação, todo o presidente eleito vai depender do PMDB, que vai continuar
sendo o fiel da balança no Congresso. Os presidentes vão continuar reféns de
uma forma de fazer política que é a do toma-lá-dá-cá.
Esse conluio, como o sr. define, implica crescimento baixo?
Essas pessoas [do conluio] não tão preocupadas com crescimento. A crítica ao
baixo crescimento é resultado da crítica em geral à política econômica. Mas não
há recessão. A Europa é que está parada desde 2009. O que impede o crescimento
é a taxa de investimento. É uma reação dos empresários à percepção sobre o
cenário econômico.
Mas o governo também não falha ao não ser mais ativo no investimento?
Houve um problema sério de transformação da vontade de investir do governo em
investimento real. Os projetos de infraestrutura continuam com problemas sérios
de execução. Há uma coalizão anti-investimento. Isso decorre, em parte, dos
controles instituídos pelos partidos políticos. O Ministério Público acha que o
sistema político é corrupto e parte do princípio de que a decisão de
investimento por parte do poder publico é corrupta do nascimento. Há uma
coalizão anti-investimento por parte de todos os mecanismos de controle. Não
estou dizendo que não deva ter controle. Mas chegou-se a um paroxismo em que é
muito difícil investir. Esse governo demorou a entender isso. Lula conseguiu,
por seu voluntarismo, fazer uma série de projetos. Vários estão ainda pelo
caminho: ferrovias, São Francisco, barragens. É fácil lançar o projeto, mas a
execução, do ponto de vista dos controles, é muito difícil. Projetos do PAC
estão capengando. Ao perceber isso, Dilma fez concessões, que é uma forma de
privatização. Agente privado não tem que fazer concorrência, não tem controles.
E, por definição, o mercado não é corrupto.
A chance maior é a da reeleição?
Dilma é a candidata mais forte. Passaram os últimos quatro anos tentando destruir
o legado de Lula, inclusive o seu jornal e a imprensa em geral no Brasil. Não
conseguiram. Lula continua sendo a pessoa mais importante na política
brasileira hoje. Ele vai entrar de cabeça na reeleição e é um cabo eleitoral
importantíssimo. Só se ouve que o governo é ruim. Apesar disso, ela tem 40%.
Claro que essa campanha, orquestrada por uma oposição que vê a chance de chegar
ao poder, minou parte da base dela. Tirando a possibilidade do inaudito, ela
está no segundo turno e é a candidata mais forte.
Como o sr. avalia essa discussão sobre a classe média e como ela deve se
comportar na eleição?
Não concordo com a afirmação de que o Brasil é um país de classe média. É uma
definição estatística, não sociológica, que só mede o consumo das famílias. É
uma definição ruim, arbitrária e equivocada. Uma parte da classe média vai
cotar na Marina e em Campos achando que está votando de maneira mais à
esquerda. Identifica nela uma novidade, coisa progressista, mesmo que ela não
seja isso. Outra parte vai voltar nos candidatos mais à esquerda, uma classe
estudantil que é militante, que foi para a rua. Outra vai continuar fiel ao PT,
que lê o cenário como um complô contra o PT. Outra parte vai votar no PSDB,
achando que o mercado é o caminho e que o Estado é gigante. Uma proporção
grande da classe média pensa assim. Isso tudo dá 20% e não ganha eleição. A
eleição vai ser decidida pelos outros 80% que incluem os 50% que são pobres e
muito pobres e 30% dessa classe popular que ascendeu e que tem demanda
reprimida. Esse pessoal vai ser o fiel da eleição.
O sr. espera grandes manifestações de rua nos próximos meses?
Grandes manifestações, como no ano passado, com um milhão nas ruas, é difícil
ter de novo. Mas a política está na rua. Isso não vai acabar. As pessoas vão
continuar se fazendo ouvir na rua.
Todo o ano de Copa e eleição há a discussão sobre a interferência do
esporte na política. Qual sua visão?
Essa discussão vem desde os anos 1970, na ditadura. Para o governante, de todos
os níveis, é melhor que o Brasil ganhe. Isso pode contribuir para amainar os
ânimos, para pacificar, para reduzir um pouco o calor da disputa política. Mas
não acho que se o Brasil ganhar vai ser bom para a Dilma. As pessoas sabem
distinguir. O brasileiro é muito mais inteligente do que se imagina.
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