Luiz Carlos Bresser-Pereira
Democracia participativa
Liberais afirmam que o decreto sobre participação social
implica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Puro nonsense
A reação negativa de certos setores da sociedade ao decreto definindo a políticaimplica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Puro nonsense
de participação social do governo revela sua determinação de limitar a
qualidade da democracia brasileira; de fazê-la perder o caráter razoavelmente
participativo, que já tem, para ser apenas liberal.
Para a teoria política, existe um conceito mínimo de democracia: é o regime
político que garante os direitos civis e o sufrágio universal. Esse conceito
corresponde à forma de democracia que os liberais aceitaram nos países ricos no
final do século 19, limitando a participação do povo à eleição de representantes
sobre os quais ele teria pouco poder.
É evidente que o processo não poderia parar aí --que a qualidade da
democracia não poderia restar mínima. A alternativa seria a democracia direta,
mas o obstáculo maior para isso está na grande dimensão dos Estados-nação. Isso
deve ter contribuído para que a definição de uma democracia que fosse realmente
o "governo do povo" assumisse a forma viável de democracia
representativa e participativa após a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, a democracia participativa foi inicialmente defendida por grupos
católicos progressistas e seu maior entusiasta foi meu saudoso chefe no governo
de São Paulo, André Franco Montoro. A ideia depois foi encampada pelo PT e se
transformou em uma de suas maiores bandeiras, mas jamais exclusiva desse
partido. Isso ficou claro na Constituição de 1988, com seus 12 incisos que
abrem espaço para a democracia participativa.
Mas a participação popular não ficou apenas na letra da lei. Ela já é uma
realidade viva e objeto de estudos. Uma das experiências, a do orçamento
participativo, ganhou projeção mundial. Em uma instituição de alto nível como o
Cebrap, existe um grupo voltado para o estudo das experiências de democracia
participativa; prática que se repete nas grandes universidades brasileiras.
O decreto nº 8.243, portanto, não legisla sobre o nada. Pelo contrário, as
formas de participação que define --as conferências nacionais, a ouvidoria
pública, as audiências e consultas públicas-- já existem no Brasil e muitas
delas, especialmente as conferências nacionais, são dotadas de grande
vitalidade e legitimidade.
Os liberais afirmam que o decreto implica o risco do surgimento de "um
poder paralelo". Isso é puro nonsense. A democracia participativa convoca
as organizações da sociedade civil e os cidadãos para participarem da definição
das políticas públicas, mas de forma consultiva.
Há uma forma mais avançada, senão utópica, de democracia que é a
"deliberativa", defendida por filósofos políticos como Jürgen
Habermas e John Rawls. Mais avançada porque os conselhos populares teriam
alguma autoridade para tomar decisões.
O decreto não é uma ameaça à democracia; pelo contrário, revela seu avanço
relativo. O decreto não põe em discussão o caráter representativo da
democracia, mas estabelece um mecanismo um pouco mais formalizado por meio do
qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas da sociedade civil.
Alguns críticos afirmam que essa seria uma forma de "pressão" das
organizações da sociedade civil sobre os parlamentares e as agências do
governo, mas desde quando ouvir os cidadãos é ser vítima de pressão? Ao
contrário, a democracia participativa é uma forma de se contrabalançar a
pressão antidemocrática dos lobbies na defesa de pleitos que geralmente
conflitam com o interesse público.
É comum ouvirmos que as democracias contemporâneas enfrentam uma crise. Essa
tese é discutível, porque é da natureza da democracia refletir aspirações que
não podem ser totalmente atendidas e conflitos para os quais não há solução
fácil. Não tenho, entretanto, qualquer dúvida de que a democracia brasileira
está forte e que o seu caráter participativo, ainda que limitado, é um de seus
principais trunfos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 79, é professor emérito de economia,
teoria política e teoria social da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da
Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e
Tecnologia (governo FHC)
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