domingo, 22 de junho de 2014

Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade

Dois anos da prisão de Assange em Londres: como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade

Dois anos da prisão de Assange em Londres: como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade




Assange na embaixada do Equador em Londres
Assange na embaixada do Equador em Londres
Publicado originalmente no Guardian.


POR SLAVOJ ŽIŽEK





Nós nos lembramos dos aniversários de eventos importantes de nossa
época: 11 de setembro (não apenas o ataque às Torres Gêmeas em 2001, mas
o golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973), o Dia D etc.
Talvez outra data deva ser adicionada a esta lista: 19 de junho.


A maioria de nós gostaria de dar um passeio durante o dia para tomar
uma lufada de ar fresco. Deve haver uma boa razão para aqueles que não
podem fazê-lo – talvez eles tenham um trabalho que os impede (mineiros,
mergulhadores), ou uma estranha doença que faz com que a exposição à luz
solar seja um perigo mortal. Mesmo prisioneiros têm a sua hora diária
de caminhada ao ar fresco.


Faz dois anos desde que Julian Assange foi privado deste direito: ele
está confinado permanentemente ao apartamento que abriga a embaixada
equatoriana em Londres. Se sair, seria preso imediatamente. O que
Assange fez para merecer isso? De certa forma, pode-se entender as
autoridades: Assange e seus colegas whistleblowers são frequentemente
acusados de serem traidores, mas são algo muito pior (aos olhos das
autoridades).


Assange se autodesignou um “espião do povo”. “Espionagem para o povo”
não é uma traição simples (o que significa que ele ele atuaria como um
agente duplo, vendendo nossos segredos para o inimigo); é algo muito
mais radical. Ela mina o próprio princípio da espionagem, o princípio de
sigilo, uma vez que seu objetivo é fazer com que os segredos se tornem
públicos. Pessoas que ajudam o WikiLeaks não são mais denunciantes
anônimos que denunciam as práticas ilegais de empresas privadas (bancos e
empresas de tabaco e petróleo) para as autoridades públicas; eles
denunciam ao público em geral essas próprias autoridades públicas.


Nós realmente não soubemos de nada através do WikiLeaks que não
suspeitássemos — mas uma coisa é suspeitar de modo geral e outra ter
dados concretos. É um pouco como saber que um parceiro sexual está nos
traindo. Pode-se aceitar o conhecimento abstrato disso, mas a dor surge
quando se conhecem os detalhes picantes, quando se tem fotos do que eles
estavam fazendo.


Quando confrontado com tais fatos, cada cidadão decente dos EUA não
deveria se sentir profundamente envergonhado? Até agora, a atitude do
cidadão médio foi um desmentido hipócrita: preferimos ignorar o trabalho
sujo feito por agências secretas. A partir de agora, não podemos fingir
que não sabemos.


Não é o suficiente ver o WikiLeaks como um fenômeno anti-americano.
Estados como China e Rússia são muito mais opressivos do que os EUA.
Basta imaginar o que teria acontecido com alguém como Chelsea Manning em
um tribunal chinês. Com toda a probabilidade, não haveria julgamento
público; ela iria simplesmente desaparecer.


Os EUA não tratam os prisioneiros da mesma maneira brutal – por causa
de sua prioridade tecnológica, eles simplesmente não precisam da
abordagem abertamente brutal (e estão mais do que prontos a aplicá-la
quando necessário). Mas é por isso que os EUA são uma ameaça ainda mais
perigosa para a nossa liberdade do que a China: as medidas de controle
não são percebidas como tal, enquanto a brutalidade chinesa é exibida
abertamente.


Em um país como a China, as limitações da liberdade são claras para
todos, sem ilusões. Nos Estados Unidos, no entanto, as liberdades
formais são garantidas, de modo que a maioria das pessoas vive sem nem
sequer estar conscientes do quanto são controladas por mecanismos
estatais.


Em maio de 2002, foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova
York tinham anexado um chip de computador capaz de transmitir sinais
elementares diretamente no cérebro de um rato – o que permite aos
cientistas controlar os movimentos do rato por meio de um mecanismo
parecido com um controle remoto de um carro de brinquedo. Pela primeira
vez, o livre-arbítrio de um animal vivo foi tomado por uma máquina
externa.


Talvez aí resida a diferença entre os cidadãos chineses e nós,
cidadãos livres em países liberais ocidentais: os ratos humanos chineses
são pelo menos conscientes de que são controlados, enquanto nós somos
os ratos estúpidos passeando em torno do conhecimento de como nossos
movimentos são monitorados.


O WikiLeaks está perseguindo um sonho impossível? Definitivamente não, e a prova é que o mundo já mudou desde suas revelações.


Não ficamos apenas cientes de muita coisa das atividades ilegais dos
EUA e de outras grandes potências. O WikiLeaks tem conseguido muito
mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em
que vivem. Algo que até agora nós tolerávamos silenciosamente tornou-se
problemático.


É por isso que Assange foi acusado de causar tanto mal. No entanto,
não há violência no que o WikiLeaks está fazendo. Nós todos já vimos a
cena clássica dos desenhos animados: o personagem chega a um precipício,
mas continua correndo, ignorando o fato de que não há chão sob seus
pés; ele começa a cair apenas quando olha para baixo e percebe o abismo.
O WikiLeaks está lembrando aqueles que estão no poder de que devem
olhar para baixo.


A reação de muitas pessoas que sofreram lavagem cerebral da mídia
sobre as revelações do WikiLeaks pode ser resumido nos versos memoráveis
da música final do filme de Altman “Nashville”: “Você pode dizer que eu
não sou livre, mas isso não me preocupa”. O WikiLeaks faz com que nos
preocupemos. E, infelizmente, muitas pessoas não gostam disso.

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