domingo, 15 de junho de 2014

ConJur - Entrevista: Heloisa Estellita, advogada criminalista e professora

ConJur - Entrevista: Heloisa Estellita, advogada criminalista e professora

ConJur — Que grandes teses criminais estamos enfrentando no Brasil?

Heloisa Estellita — Há várias. No mensalão, por
exemplo, foram colocadas questões interessantes, mas que não puderam ser
discutidas com serenidade, o que prejudicou a qualidade da discussão.
Um exemplo é a responsabilidade dos dirigentes de empresa por omissão
dos crimes praticados por seu subordinados e seus pares. Discute-se a
omissão de quem está na posição de dirigente e não celebrou nenhum
contrato, não atuou, mas se omitiu no dever de impedir um resultado,
porque os crimes estavam sendo praticados pelos subordinados. Isso tem
implicações com os programas de integridade, tão em voga atualmente. Com
a lei anticorrupção, o dirigente passa a ter o dever de saber se há
corrupção dentro da sua empresa, algo que não existia antes.

ConJur — E o caso do domínio do fato?

Heloisa Estellita — Há aí uma grande confusão. Os
crimes omissivos não atendem à estrutura do domínio do fato. Nem os
omissivos, nem os crimes próprios, de funcionário público, por exemplo. O
sentido de domínio do fato para Claus Roxin é um domínio muito real.
Não basta ser o dono da empresa, é necessário dominar a execução do
crime. Um tratamento mais rigoroso das formas de imputação da
responsabilidade em empresas é um grande tema. Nessa linha, temos a
questão da responsabilidade do compliance officer, que terá de ser muito bem tratada. Atualmente há vários obrigados a medidas de compliance.
Por exemplo, um joalheiro está obrigado, pela Lei de Lavagem, a fazer
um programa de prevenção à lavagem. Se ele for um pequeno joalheiro,
deverá ter um programa de integridade básico. Se lidar com o poder
público, faz sentido que também tenha um programa de integridade
anticorrupção. A pessoa responsável por isso tudo vai estar
sobrecarregada de deveres. E a relação dela com a cúpula da empresa é um
problema que não pode ser descuidado.

ConJur — Como organizar isso em uma empresa?

Heloisa Estellita — Implicará muito gasto. As pessoas
não perceberam o custo econômico dessa legislação. Boa assessoria
jurídica nessa área não é barata. No ano passado, a FGV fez, com o COAF e
o IBGM, um guia de prevenção à lavagem para joalheiros. É um manual que
explica para leigos, joalheiros de pequeno porte, o que a lei
determina. A segunda edição deve sair até o final desse semestre e foi
preparada pela minha equipe da Clínica. Incluímos uma lista de operações
com bandeiras amarelas e operações com bandeiras vermelhas, para ajudar
a pessoa obrigada a entender quando ela está diante de uma operação de
risco. Mas isso é o mínimo. Para coisas mais complicadas, será preciso
assessoria jurídica. Não tem jeito.

ConJur — E o foco é só joalheiro?

Heloisa Estellita — Nesse guia, sim. Mas estamos
elaborando algo para o mercado imobiliário, em uma louvável iniciativa
do CRECI-SP. O número de agentes imobiliários é muito grande. É um setor
sensível no Brasil.

ConJur — Os problemas são semelhantes?

Heloisa Estellita — Na verdade, é mais fácil fazer
lavagem de dinheiro com produtos vendidos em joalherias. Especialmente
diamantes, que não são detectados, por exemplo, em detectores de metais.
Coloca-se R$ 1 milhão na palma da mão e leva-se para onde quiser.

ConJur
— Uma vez extinta a punibilidade do crime contra a ordem tributária,
pelo pagamento de tributo, em relação ao crime de lavagem de dinheiro,
que tinha como crime antecedente o de sonegação fiscal, também estaria
extinta a punibilidade?


Heloisa Estellita — Não. Essa é uma disposição
claríssima da Lei 9.613. É uma contradição na política criminal no campo
penal tributário, mas está aí. Mais uma das incongruências que a Lei de
Lavagem gera.

ConJur — Esse tipo de incongruência não pode vir a mudar, sendo uma contradição tão clara?

Heloisa Estellita — Teria uma saída interpretativa que seria bem razoável: interpretar a autolavagem como bis in idem e,
portanto, inválida. O Supremo disse, no Mensalão, que não é. Mas o
Supremo não parece ter considerado, naquele caso, todas as consequências
disso. Não temos uma decisão de Plenário, em controle abstrato, dizendo
isso. Na medida em que não se puder punir o autor do crime tributário
pelo crime de lavagem, esse problema já estará resolvido, porque a
extinção da punibilidade tem efeitos para ele. Mas o terceiro que lavar
dinheiro vai responder pela lavagem, ainda que extinta a punibilidade do
crime tributário.

ConJur — No caso do mensalão discutiu-se isso, na parte do João Paulo Cunha...

Heloisa Estellita — O argumento que ganhou foi o de que
o recebimento do dinheiro era modalidade de prática da corrupção, não
autolavagem. Estava absolutamente correto. A tese é linear e clara. A
proibição de autolavagem resolveria várias situações de injustiça que a
Lei de Lavagem cria. E daria muito mais sentido para o tipo de lavagem.
Por exemplo, se a pessoa que vende a rifa não puder ser punida pela
lavagem do valor da rifa, resolve-se de uma forma razoável a grande
acusação contra a reforma de 2012, que passou a punir uma contravenção
penal com uma pena de reclusão de 3 a 10 anos. É um absurdo, mas também
está aí.

ConJur — Isso também se aplica ao bicheiro?

Heloisa Estellita — Ao bicheiro também. Esse parece ter
sido o motivo da reforma no que diz respeito à inclusão das
contravenções como infrações antecedentes. Se a questão era colocar o
jogo do bicho como antecedente da lavagem, que se transformasse o jogo
do bicho em crime, o que não parece recomendável é incluir  todas as
contravenções como antecedentes da lavagem, nem a Convenção de Palermo o
sugeriu. É o remédio que mata o paciente. Mas a proibição de punir a
autolavagem resolveria o problema. Primeiro porque o autor do crime
tributário já não poderia responder pela lavagem. E aí, obviamente, a
extinção da punibilidade teria efeito para o crime tributário. Mas se
puniria pela lavagem o terceiro que praticou atos de lavagem do produto
do crime tributário. E o pagamento do tributo não teria efeito sobre
ele, o que faz todo sentido.

ConJur — Você isolaria um do outro.

Heloisa Estellita — Isolaria um do outro e o efeito da
benesse, da política fiscal com relação ao crime tributário, não
contaminaria a pessoa que colaborou para que o dinheiro fosse escondido.
Porque merece a sanção. Seria o exemplo do sonegador que contrata uma
pessoa para esconder o dinheiro. O ordenamento proíbe a dissimulação ou
ocultação de produto de crime.

ConJur — No julgamento do
mensalão surgiu a discussão sobre a incriminação do advogado por receber
dinheiro do seu cliente, um dinheiro que, em tese, seria sujo. Como
enfrentar essa discussão?


Heloisa Estellita — A lei penal brasileira não pune o
recebimento de valor de crime como lavagem. Tem que forçar muito a barra
para enquadrar isso no parágrafo 2º, inciso 1º do artigo 1º da Lei de
Lavagem de Dinheiro [Lei 9.613]. Receber dinheiro produto de
crime não é crime de lavagem no Brasil. Na Espanha e na Alemanha é, por
exemplo. E isso afeta não só o advogado, mas também o dentista, o
padeiro, o dono da escola onde estuda o filho do suposto criminoso...
Por que o advogado reluz nesse meio? Porque, se ele atua na área
criminal, sabe que o cliente é suspeito. Essa é a única diferença entre o
advogado e o dono da escola. Mas saber de uma coisa torna essa conduta
criminosa? Não me parece. As pessoas veem uma possibilidade de tipificar
o recebimento de honorários no parágrafo 2, inciso 1, do artigo 1, que
fala sobre usar na atividade econômica dinheiro proveniente da prática
de crime. Seria uma situação esdrúxula se aplicado ao advogado que
recebesse valor a título de honorários legítimos em sua pessoa jurídica e
o utilizasse nas atividades econômicas dessa mesma pessoa jurídica.
Ainda assim não faz sentido. Outra coisa: essa é uma decisão de Estado.
Se vamos debater se deveríamos criminalizar o recebimento de pagamento
de honorários por advogados privados, temos de sentar e conversar mesmo,
pois isso interfere diretamente no direito de defesa. Nenhum Estado que
eu conheça decidiu que criminosos não podem escolher seus advogados.
Porque é isso que vai acontecer se criminalizarmos o recebimento
honorários por cidadãos suspeitos.

ConJur — O suspeito será obrigado a ir para a Defensoria Pública.

Heloisa Estellita — Exatamente. Essa é uma decisão de
Estado. Se nós, como Estado, quisermos que os criminosos não possam
escolher seus advogados, via proibição de receber os honorários, há que
se aparelhar a defensoria. E sabemos muito bem como o Estado trata a
defensoria no Brasil, infelizmente.

ConJur — Como o Estado trata a defensoria no Brasil?

Heloisa Estellita — Mal. Basta ver que o salário de
defensor não é equiparado ao de promotor. Há a discussão da concepção
cênica das salas de audiência que está no Supremo. O promotor senta do
lado do juiz, o defensor não. Isso é algo inconcebível no processo
penal, no qual o promotor é tão  parte quanto o defensor.

ConJur — A posição do MP no tribunal é resquício da ditadura?

Heloisa Estellita — É resquício de um povo que aprendeu
a ser cuidado por um “ente” que é o Estado, algo bem paternalista. O
brasileiro parece achar que ele serve ao Estado, e não o contrário. Por
isso, quando se fala de quebra de sigilo bancário, as pessoas respondem:
“Quem não deve, não teme”. Não entendem que não é questão de dever ou
temer. Eu tenho direito à intimidade e só abro mão quando houver extrema
necessidade pública. O Estado serve aos cidadãos, que não lhe devem
ceder nenhum direito desnecessariamente. O Estado não precisa saber
quanto eu tenho na minha conta, eu posso não ter nada e mesmo assim
tenho o direito a não compartilhar essa informação. Para mim, é com base
nessa raiz, digamos, paternalista, que o MP acabou sendo visto e
tratado como um terceiro desinteressado no processo penal, o que é uma
falácia. Em outros setores,  ele é, de fato, fiscal da lei, mas, no
processo penal, é parte, embora não seja tratado assim.

ConJur — Hoje em dia quase não existe vaga no semiaberto, e a pessoa vai para prisão domiciliar. Como se resolve isso?

Heloisa Estellita — Se queremos cumprimento de pena em semiaberto, há que investir.

ConJur — Ou está na hora de rever o semiaberto?

Heloisa Estellita — Eu acho que está na hora de rever o
semiaberto, o aberto e as prisões preventivas. Todas. Prisão mesmo,
reclusão total, tinha que ser para quem realmente precisa, que não pode
ficar em contato com a sociedade. Não para resolver problema de pobreza,
porque não resolve. Ninguém investiria no setor, nem sob o ponto de
vista de filantropia. Produz-se algo em torno de 74% de reincidência no
Brasil, e pouco se faz para melhorar isso. Ou seja, estamos gastando
dinheiro à toa, sem praticamente nenhum retorno. Claro, não dá para
fazer uma revolução de uma hora para a outra. Nenhum outro país achou
solução para prisão que não fosse combater a causa de entrada das
pessoas no sistema carcerário. Mas os países que conseguiram combater a
causa estão fechando os presídios, porque não têm presos. Nosso sistema
carcerário está inchado também em função de crimes relacionados às
drogas e sou a favor de uma política que não envolva a criminalização
nesse setor, mas um rigoroso controle. Trata-se de criminalização que
não compensa: entre ônus e bônus, os ônus são desproporcionais aos
bônus. A consciência sobre isso aumenta a cada dia e em todo o mundo.

ConJur — Parecerista na área cível é muito bem remunerado. Na área penal também?

Heloisa Estellita — Também. É bem remunerado. Mas a
remuneração no litigioso penal é muito alta. Com o crescimento do
consultivo penal, o parecer e a opinião legal vão ser um grande mercado.
E é uma vida, pelo menos sob meu ponto de vista, com mais qualidade.

ConJur — Você acha que inquérito policial deveria ser extinto?

Heloisa Estellita — Não. Você não corta o braço do
paciente porque ele está com um problema em um dedo. Você aplica algum
tratamento . O recebimento de uma denúncia no processo penal é uma coisa
muito séria na vida civil de uma pessoa. O inquérito, ainda com todos
os defeitos que tem, é um jeito de apurar se ali há mesmo indícios de
crime e quem é seu autor. Como o juiz poderá avaliar a justa causa de
uma acusação se não tiver alguns elementos probatórios já produzidos
para averiguar a plausibilidade da ação penal?

ConJur — O espaço para defesa no inquérito deveria ser mudado?Heloisa Estellita — Talvez.
Talvez a defesa pudesse requisitar produção de provas pela polícia, tal
qual o MP. O medo é que isso transforme o inquérito em outro processo.
Porque se há partes, aí é processo, e teremos um, e depois outro.

ConJur — Qual sua opinião sobre os mutirões carcerários?

Heloisa Estellita — São fundamentais. Tenho certeza que
os livros de história falarão, sobre estes dias que vivemos: “Gente
bárbara. Como deixaram um sistema carcerário desse jeito?” Essa talvez
seja uma das poucas coisas boas advindas do Mensalão. As pessoas que são
formadoras de opinião começaram a olhar um pouco para o sistema
carcerário. Ninguém sai igual de um presídio brasileiro. É um sistema
quase que feito para não funcionar. Não tem como funcionar. Porque é
ilógico que eu “treine” alguém para a liberdade sem dar liberdade. É
como pretender treinar um aluno sem que ele faça qualquer exercício.

ConJur — Esse paralelo é ótimo.

Heloisa Estellita — “Vou te ensinar só a teoria, você
não vai aprender nada na prática. Vou te ensinar um ano a como cozinhar,
só que você não vai ver o alimento, não vai pegar o alimento”, isso não
pode funcionar. No presídio, o sujeito será agredido e privado de quase
todos os direitos básicos que  tem, como ser humano que é. Depois,
querem que saiam como bons cidadãos, desfrutem de sua liberdade e
valorizem os direitos alheios que não lhe foram garantidos. Não é
paradoxal? Por enquanto, aparentemente, não há outra solução.

ConJur
— Esses dias foi considerada válida a prova produzida por um grampo, um
gravador, na privada do presídio. O presídio não é tido como domicílio
do preso? Ele não seria inviolável?


Heloisa Estellita — Boa pergunta. O preso está sob
custódia do Estado. A rigor, o direito à liberdade é restringido quando
recebe uma sentença condenatória. Se alguém não pode se locomover, não
pode  arrumar emprego em qualquer lugar, não tendo o exercício livre da
profissão. Mas continua tendo direito à intimidade, à honra e à
educação, por exemplo.

ConJur — Ele tem direito à intimidade?

Heloisa Estellita — Tem. Claro que tem. Dentro dos
limites do que uma prisão permite. A Lei de Execução Penal não determina
que o preso perca o direito à intimidade.

ConJur — Você é
a favor de ampliar acordos entre o Ministério Público, advogado e réu
na área penal, para evitar prisão, como no sistema americano?


Heloisa Estellita — Sou contra. Absolutamente contra.
Se se pode fazer acordo, não há necessidade de Direito Penal.
Subverte-se a lógica. Os Estados Unidos são um bom exemplo de como isso
não dá certo, na minha opinião, claro. E quando há condenação, a pena
costuma ser desproporcional. Porque é uma barganha, como a que ocorre
quando da compra de um imóvel: o dono aumenta o preço, o comprador o
joga lá embaixo. Acontece a mesma coisa no processo. Só que estamos
falando de interesse público e lógica de justiça. O MP vai jogar lá em
cima, vai elencar, por exemplo, 10 acusações, quando, na verdade, tem
provas de uma. O réu vai jogar lá embaixo, vai fechar em duas, digamos.
Só que o MP só tinha prova de uma. Se se pensar que o interesse final do
processo penal é fazer justiça, e não condenar, então esse exemplo
demonstra como a lógica do acordo não pode atender a esse fim.

ConJur
— A maioria dos presos está na cadeia por crimes pequenos, furto, roubo
e tráfico. Como é que a gente tira essas pessoas da prisão?


Heloisa Estellita — Muito simples e muito trabalhoso:
educação e emprego. E as condições mínimas de vida. Temos duas frentes
para trabalhar com isso: a preventiva, que é fazer o cidadão não ser
encarcerado, e também cuidar de quem sai de lá. Com educação, o sujeito
terá chances de um bom emprego, não precisará cometer crimes. Crime
patrimonial é crime de quem está precisando de dinheiro, na grande
maioria dos casos. E, na outra ponta, o mesmo: dar condições materiais
para que o egresso não volte para o sistema, ou seja, educação e
trabalho.

ConJur — Há quanto tempo a senhora está atuando no consultivo? Como está a carreira?

Heloisa Estellita — Saí do Toron, Torihara e Szafir
Advogados há um ano para me dedicar mais à Fundação Getulio Vargas e a
um projeto pós-doutorado, que envolve alguns períodos de pesquisa na
Alemanha. Associei-me ao Alonso Leite Groch Advogados e ao
FeldensMadruga. Mantenho uma relação muito próxima e de profunda
admiração com o Alberto Zacharias Toron, Edson Torihara, Alexandra
Szafir e toda sua equipe. Trabalho hoje com diversos escritórios de
advocacia da área penal, primordialmente.

ConJur — Quanto tempo a senhora dedica por semana para advocacia e para vida acadêmica?

Heloisa Estellita — Depende da época. Se estou
trabalhando em algum parecer, com alguma consultoria em andamento, tenho
de sacrificar bastante os finais de semana, porque grande parte da
minha carga de trabalho durante a semana é dedicada à FGV, onde tive a
chance de desenvolver projetos na área penal econômica que não imaginava
poder desenvolver em um ambiente acadêmico e profissional de tão alto
nível.

ConJur — Mas antes a senhora estava no litígio direto. Como foi essa mudança?

Heloisa Estellita — O Toron, Torihara e Szafir sempre
abriu espaço para que as pessoas pudessem estudar, fazer pós-graduação,
dar aulas. Eu tinha uma equipe excelente, havia uma interação perfeita,
isso permitia um trabalho em conjunto muito eficiente. Tinha casos
grandes, mas não cuidava de muitos casos.

ConJur — Sente saudade de entrar no meio da “pancadaria”?

Heloisa Estellita — Eu gosto da pancadaria. Mas o que
eu mais gosto nela é o problema jurídico que está no centro do caso.
Acho que é por isso que também gosto de viver essa vida dupla, academia e
advocacia. Sei que ela é custosa, é sacrificante, mas me dá uma
satisfação singular.

ConJur — Como consultora, a senhora notou uma influência da nova Lei de Lavagem no aumento da busca pelo preventivo?

Heloisa Estellita — Aumentou. Vai aumentar mais com a Lei Anticorrupção.

ConJur
— Toda semana vemos escritórios fazendo eventos sobre Lei Anticorrupção
para clientes. Há tanto assim o que se alertar? Ou isso serve para
chamar novos clientes?


Heloisa Estellita — Há muito que se alertar, há muito a
fazer, mas também é um produto. Eu estava lendo um artigo sobre isso,
de uma professora espanhola dizendo: “Um pouco também desse bochicho
[sobre a nova lei anticorrupção] é a advocacia querendo vender serviço”,
ela tem lá sua razão.

ConJur — Um escritório só para compliance faz sentido?

Heloisa Estellita — Sob o ponto de vista penal e sob o
ponto de vista econômico, acho complicado. Terá de dar algum suporte,
pelo menos, de prevenção ao litígio. Por exemplo, a Lei Anticorrupção
prescreve que a empresa que tiver um bom sistema de compliance vai
entregar à autoridade pública a pessoa individual que praticou o ato de
corrupção o que gerará uma investigação e possivelmente um processo
penal. Então, se for entregar o dirigente, há de ter cuidado. Ademais,
os procedimentos internos de investigação, que eventualmente serão
instalados, principalmente nas empresas de grande porte, podem gerar
problemas de invasão de privacidade. São pessoas privadas produzindo
provas, com uma penetração em níveis de proteção do trabalhador e da
intimidade que só cabe à autoridade judicial determinar.

ConJur — E como funciona isso? Com uma lei assim, fica liberada a produção de provas dentro da empresa?

Heloisa Estellita — Exige-se que a empresa o faça para
que tenha a sanção reduzida. Acho lamentável que a lei tenha
estabelecido a responsabilidade objetiva. Se houver denúncia do ato de
corrupção dentro da empresa, haverá mitigação de pena. Para denúncias
internas, deve ser implementado um canal interno na empresa. Quando se
detectar um problema, haverá monitoramento e investigação. Com isso,
serão obtidas provas do local de trabalho desse funcionário,
provavelmente suas comunicações. Há de se tomar muito cuidado, pois vai
resvalar na área trabalhista.

ConJur — A empresa não pode interceptar ligações internas de seus funcionários?

Heloisa Estellita — Essa é uma grande discussão no
âmbito trabalhista e que vai “ferver” com a nova lei. Os tribunais serão
obrigados a decidir sobre o tema.

ConJur — No caso da interceptação de e-mail corporativo, ainda não há jurisprudência firme. As decisões variam muito.

Heloisa Estellita — Pois é, a situação é insegura. A
empresa é obrigada a investigar. Se descobrir algo e não denunciar, a
sanção é maior. Mas, por outro lado, a jurisprudência é completamente
insegura quanto a como ela pode fazer isso. É aí que haverá bastante
trabalho para os advogados. Os tribunais terão de decidir isso, porque
se a lei impõe o dever, precisa dar os meios para seu atendimento. Mas, a
princípio, não se pode interceptar telefone sem ordem judicial.
Interceptação é crime no Brasil. Pode-se, sim, gravar uma ligação sendo
um dos interlocutores.

ConJur — E no caso de denúncia falsa, como a empresa deve fazer?

Heloisa Estellita — Tem de apurar. Talvez possa haver
demissão por justa causa. O programa de integridade terá de prever todas
essas situações, bem como garantir estabilidade àquele que denunciou . A
partir do momento em que há uma comunicação, a pessoa que denunciou tem
que estar com estabilidade garantida. Mas a improcedência dolosa pode
gerar a perda da estabilidade, dentre outras consequências.

ConJur — A empresa que se autodenunciar às autoridades não fará  prova contra si mesma.

Heloisa Estellita —Esse é um dos defeitos da lei. Se a
empresa tem um sistema de integridade tão bom que detecta um ato de
corrupção e consegue resolver internamente a questão, com mínima chance
de que isso “vaze”, não terá incentivos para reportar o fato às
autoridades, porque, de qualquer forma, será sancionada. Por que ir à
autoridade pública? Esse é um dos equívocos estratégicos da nova
legislação anticorrupção, a falta de previsão de isenção de pena para a
empresa que tenha um ótimo sistema de integridade.

ConJur — A era das grandes operações policiais acabou?

Heloisa Estellita — Tem de perguntar para a Polícia Federal. Acho que a época da caça às bruxas acabou no julgamento do Habeas Corpus 95.009[impetrado
preventivamente pelo banqueiro Daniel Dantas, diante de notícia
publicada pelo jornal Folha de S. Paulo dando conta de que ele poderia
vir a ser preso pela Polícia Federal, no curso da operação satiagraha,
em junho de 2008]
. Começou com aquela liminar e acabou com o dia do
julgamento no Plenário, no qual o STF deu uma mensagem muito clara: uma
coisa é fazer operação, outra é humilhar desnecessariamente cidadãos
brasileiros, ainda que suspeitos da prática de crimes graves. Acho que
isso acabou.

ConJur — A gente viu o Ministério Público se mexendo muito na época da votação da Proposta de Emenda à Constituição 37...

Heloisa Estellita — Eu acho que a investigação pelo MPF
ainda vai ser  um tiro no pé. É muito fácil arguir violação de
princípios básicos da Administração Pública por parte de um membro do MP
que escolhe o que quer investigar. Vivemos em um país de legalidade,
temos que poder controlar o poder público. Qual será o critério para
escolher o que o MP investiga e o que não investiga? Isso é altamente
questionável.

ConJur — A PEC deveria ter sido aprovada?

Heloisa Estellita — Não. A matéria deveria ser
regulamentada. É a visão do ministro [aposentado] Cezar Peluso com a
qual concordo: há esferas de competência para investigar crimes que não
podem ficar na mão da própria polícia. Mas tem-se de encontrar uma forma
de compor. Não pode ser 8 ou 80. Aí também a culpa não é do MP.
Colocou-se o debate como se fosse tudo ou nada, e não é isso.

ConJur — O que a senhora acha da interceptação de telefone por parte do MP?

Heloisa Estellita — É inadmissível que seja feita sem
autorização judicial. Mesmo com autorização, se não é regulamentado, não
pode ser feito. É imprescindível zelar pela fidedignidade da prova.
Outra questão pouco cuidada no Brasil.

ConJur — Em questões envolvendo grampo?

Heloisa Estellita — Grampo, material computacional...
Raramente se tem a cadeia de custódia. Espelha-se um HD sem estabelecer a
cadeia de custódia, quem vai garantir que ninguém alterou aquilo?

ConJur — Não existe isso aqui?

Heloisa Estellita — Raramente, só quando a policia tem
recursos. A fila no instituto de criminalística, o que eles têm de
trabalho, é inacreditável... Mas para a Justiça Penal ninguém dá muita
bola, não é?

ConJur — Não é essa que todo mundo fica pleiteando que devia funcionar mais, que devia prender mais?

Heloisa Estellita — Houvesse melhores condições, com
uma polícia estadual melhor remunerada e melhor equipada... Mas não é
assim. Não por culpa deles. É uma pena.

ConJur — No
Brasil, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa é a única entidade
voltada especificamente para o direito de defesa. Nos EUA acompanhamos
uma movimentação maior sobre o tema. A senhora acha que o Brasil
precisava de mais espaço para discutir o direito de defesa?


Heloisa Estellita — Em
tese, não, porque as facetas do direito de defesa estão bem cuidadas em
nossa legislação. É necessário que se lhe dê mais amplo cumprimento,
nesse sentido, entidades como o IDDD, mas também o IBCCrim e a própria
Defensoria, nos níveis estadual e federal, são interlocutores da maior
importância.

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