domingo, 25 de maio de 2014

A despolitização da democracia dá lugar à juristocracia’

..:: OAB/RJ ::..

A despolitização da democracia dá lugar à juristocracia’


Maria Luiza Quaresma Tonelli



Em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo, a filósofa
Maria Luiza Quaresma Tonelli analisa a judicialização da política e a
soberania popular e expõe sua preocupação com a redução da democracia ao
Estado de Direito. Para ela, isso significa que a soberania popular
passa a ser tutelada pelo Poder Judiciário, cristalizando a ideia de que
a legitimidade da democracia está sujeita às decisões dos tribunais
constitucionais. Os cidadãos são desresponsabilizados de uma
participação maior na vida política do país; nesse contexto,
estabelece-se o desequilíbrio entre os poderes e generaliza-se uma
percepção negativa da política e até a sua criminalização, alerta.



PATRÍCIA NOLASCO
 
O Brasil vive uma situação de judicialização da política?

 
Maria Luiza Tonelli – Sim. É um processo que vem
desde a promulgação da Constituição de 1988. A Constituição é uma carta
política da nação, mas a nossa foi transformada numa carta
exclusivamente jurídica. Isso significa que a soberania popular passa a
ser tutelada pelo Poder Judiciário, cristalizando a ideia de que a
legitimidade de qualquer democracia decorre dos tribunais
constitucionais. Ora, decisões judiciais e decisões políticas são formas
distintas de solução de conflitos. Por isso o tema da judicialização da
política remete à tensão entre a democracia e o Estado de Direito. A
judicialização da política reduz a democracia ao Estado de Direito, e
estamos percebendo que alcançou patamares inimagináveis. Nesse contexto,
em que vigora a ideia conservadora de que a democracia emana do Direito
e não da soberania popular, a criminalização da política é consequência
da judicialização. Isso é extremamente preocupante, pois generaliza-se
uma ideia negativa da política.



A senhora diz que as condições sociais na democracia brasileira
favorecem a judicialização. Como isso se dá e como afeta a soberania
popular e o equilíbrio dos poderes?


 
Maria Luiza – A judicialização da politica não é
um problema jurídico, é político. Tem várias causas, mas é no âmbito
social que tal fenômeno encontra as condições favoráveis para a sua
ocorrência. Vivemos em uma sociedade hierarquizada e, em muitos
aspectos, autoritária. Nossa cultura política ainda tem resquícios de
conservadorismo. O Brasil foi o último país do continente americano a
abolir a escravidão. Trezentos e oitenta e oito anos de trabalho
escravo. Passamos pela mais longa das ditaduras da América Latina. Vinte
e um anos de um Estado de exceção no qual a tortura era uma política de
Estado. Não é por acaso que a sociedade brasileira se esconde por trás
do mito da democracia racial e nem se escandaliza com as torturas ainda
hoje praticadas nas delegacias e nas prisões. Em uma sociedade pouco
familiarizada com a ideia de respeito aos direitos humanos fica fácil
convencer as pessoas de que a solução para os problemas sociais e
políticos está muito mais nos tribunais do que na política. Isso afeta a
soberania popular, pois desresponsabiliza os cidadãos de uma
participação maior na vida política do país. A judicialização favorece o
afastamento da política nas democracias afetando o equilíbrio dos
poderes na medida em que propicia a invasão do Direito na política. É a
soberania popular desapossada de seu papel de protagonista na
democracia, dando lugar à hegemonia judicial. A despolitização da
democracia dá lugar à juristocracia.



A defesa da ética na política utilizada como arma por setores
conservadores e da mídia para paralisar a política, já mencionada pela
senhora, estaria obscurecendo a própria noção de democracia?


 
Maria Luiza – O problema não é a defesa da ética
na política, mas esta última avaliada com critérios exclusivamente
morais. Há uma diferença entre a moral e a ética. Agir de forma
estritamente moral exige apenas certo grau de obediência; agir
eticamente exige pensamento crítico e responsabilidade. Obviamente que a
política deve ser avaliada pelo critério moral; ela não é independente
da moral dos homens e da ética pública, mas há critérios que são
puramente políticos. Valores políticos mobilizam para um fim; valores
morais impedem em nome de uma proibição. A política visa ao bem comum,
ao interesse público. Daí que o critério da moral não pode ser o único,
pois a moral nos diz o que não fazer, não o que fazer. Por isso, a moral
pode ser utilizada por setores conservadores e pela mídia para
paralisar a política, tanto para impedir o debate de temas polêmicos no
Parlamento, como para satanizar o adversário, transformando-o em inimigo
a ser eliminado. O debate sobre a política, reduzida ao problema da
corrupção como questão exclusivamente moral, e não política, dá margem
aos discursos demagógicos e à hipocrisia. Isso tem mais a ver com o
moralismo do que com a moral ou com a ética. Quando tudo é moral,
julga-se mais a virtude dos homens individualmente do que o valor de um
projeto político ou a importância  de algumas políticas públicas, o que
afeta de maneira substancial a noção de democracia.



Dentro do processo político, como analisa as causas e os efeitos dos protestos nas ruas?



Maria Luiza
– Protestos têm como causa a insatisfação. Nas
sociedades democráticas, protestar é um direito. Quem protesta quer ser
ouvido e atendido. Em um país como o nosso, que, apesar dos avanços,
ainda padece da carência de serviços públicos de qualidade, as
manifestações nas ruas podem ter como efeito uma nova cultura política
de fortalecimento da democracia. O que não podemos concordar, todavia, é
que o uso da violência numa democracia sirva de justificativa para a
conquista de mudanças sociais e políticas. O efeito pode ser o
contrário. Política e democracia não combinam com violência.

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