domingo, 25 de maio de 2014

Folha de S.Paulo - Mercado - O PIB dos economistas e o PIB do povo - 25/05/2014

Folha de S.Paulo - Mercado - O PIB dos economistas e o PIB do povo - 25/05/2014







Samuel Pessôa 

O 'PIB do povo' cresceu mais do que o 'PIB dos economistas', mas à custa da
piora nas contas externas



Na terça feira da semana passada, ampla reportagem do jornal
"Valor" noticiou o entusiasmo do titular da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República e meu colega da FGV, Marcelo Neri, com
os avanços sociais na última década e, em particular, no quadriênio de Dilma
Rousseff.



Adicionalmente o ministro apontou a defasagem que há entre a evolução do
produto per capita do país, também chamado de "PIB dos economistas",
e a renda pessoal medida pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios) do IBGE, o "PIB do povo".



Entre 2003 e 2012, ano da Pnad mais recente disponível, o PIB per capita
cresceu em termos reais 28%, enquanto a renda mediana domiciliar per capita
teve aumento de 78%! Houve defasagem na velocidade de crescimento dos PIBs
"do povo" e "dos economistas" de 50 pontos percentuais.



Marcelo é reconhecido como um dos melhores microeconomistas da área de
economia do trabalho no Brasil. Microeconomistas trabalham em geral com bases
de dados muito amplas e estudam em detalhe a natureza de cada indivíduo. Diz-se
que olham as árvores sem se preocupar com a floresta. Já os macroeconomistas
estudam a floresta sem se preocupar com cada uma de suas árvores.



O risco da análise macroeconômica é não notar pequenas dinâmicas que aos
poucos ganham corpo e acabam por ter impactos agregados importantes.



Já os microeconomistas correm o risco de não reconhecer que a dinâmica da
árvore pode depender de fatores agregados que estejam a atingir toda a
floresta. Por exemplo, é possível que a árvore esteja crescendo mais rápido
porque as condições climáticas alteraram-se transitoriamente, em favor do
crescimento. Quando o clima retor- nar ao padrão usual, a bonança perderá
fôlego.



Parece que esse longo período no qual o PIB do povo andou além do PIB dos
economistas foi acompanhado da construção de desequilíbrios em outras variáveis
macroeconômicas que colocam em xeque a manutenção do processo.



Entre 2003 e 2012, o deficit de transações correntes como proporção do PIB
elevou-se em 3,2 pontos percentuais. Como mostrei na semana passada, nesse
período os termos de troca, isto é, o preço da pauta exportadora em unidades da
pauta importadora, cresceu mais de 20%. Conta simples sugere que, se não
tivesse havido a alteração dos preços em nosso favor, a variação do deficit de
transações correntes entre 2003 e 2012 seria de mais de sete pontos percentuais
do PIB, visto que nesse período a absorção (consumo e investimento dos setores
público e privado) cresceu 60%, e o produto, 40%.



Ou seja, parece haver associação entre o fortíssimo crescimento do PIB do
povo além do PIB dos economistas e a elevação do deficit externo, que saiu de
um superavit de 1,76% do PIB em 2004 para um deficit hoje na casa de 4%.



Para verificar essa possível associação, tomei as Pnads de 1981 até 2012.
Calculei a renda individual mediana de todos os trabalhos a preços de 2012.
Essa será a minha medida do PIB do povo. Para o PIB dos economistas, considerei
o PIB per capita a preços de 2012.



Para cada um dos anos, tomei a diferença entre as taxas de crescimento do
PIB do povo e do PIB dos economistas entre 1981 e a referida data. Sempre que
essa estatística for positiva, significa que, entre 1981 e a referida data, o
PIB do povo andou além do PIB dos economistas. Quando for negativa, o PIB do
povo andou aquém do PIB dos economistas. Chamei essa variável de defasagem
entre os PIBs.



A má notícia é que a correlação entre o deficit de transações correntes e a
defasagem entre os PIBs é de 75%. Desde a década de 1980, três quartos da
variação do PIB do povo não explicada pela trajetória do PIB dos economistas
está associada à piora das contas externas.



Enquanto os microeconomistas do governo municiam a presidente e seus
auxiliares com informações positivas associadas ao bom desempenho do PIB do
povo, seria oportuno que os macroeconomistas do governo se debruçassem sobre o
problemão de arrumar a casa --isto é, reduzir o deficit externo, entre outras
coisas-- sem fazer com que o PIB do povo ande muito aquém do PIB dos
economistas.





SAMUEL PESSÔA, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador
do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

 


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