A realidade que não cabe no jornal
Por Cátia Guimarães em 29/04/2014 na edição 796
“Meu leitor morre de ataque cardíaco, não de hanseníase.” Essa foi a explicação que uma jornalista da revista Época
deu certa vez a um assessor de imprensa que questionava a dificuldade
de conseguir espaço na grande mídia para divulgar os resultados de uma
pesquisa sobre a doença que tem no Brasil o segundo maior número de
casos, perdendo apenas para a Índia. Essa frase, que já reproduzi em
outras ocasiões, não me sai da cabeça desde que começaram os primeiros
relatos jornalísticos sobre a desocupação da chamada “favela da Telerj”,
na verdade um prédio público administrado pela empresa Oi como parte da
concessão do serviço de telecomunicações e abandonado há 12 anos no Rio
de Janeiro.
Jornalisticamente, o que aproxima a hanseníase da ocupação da Telerj é o
fato de, pelo menos numa primeira impressão, serem ambos problemas de
pobre. E, como a confissão acima mostra, ao contrário do que você foi
levado a acreditar, o jornalismo não trata do interesse público, mas do
interesse de alguns públicos, bem específicos e selecionados. Quando um
tema não é do interesse do público eleito de um jornal, ele pode
simplesmente não ser notícia (como em geral acontece com a hanseníase)
ou, o que é muito pior, tornar-se parte (em geral o obstáculo) da
notícia de alguém.
Pois bem. Na edição do Globo de sábado (19/4), seria cômico se
não fosse trágico ver que a notícia estampada na capa do jornal era o
cancelamento do tradicional ato da sexta-feira da Paixão pela
Arquidiocese do Rio por causa dos “invasores”. Os acampados da porta da
catedral, horda de miseráveis expulsos a cada dia de um espaço,
carregando crianças, fome e uma estrutural falta de lugar nessa
sociedade, são o motivo da notícia. Entre as seis perguntas que devem
compor o famoso lead, resumo inicial de uma notícia, eles, os
miseráveis, são o “por quê”, não “o que” nem o “quem”. São a explicação
de uma notícia negativa, não personagens de narrativa alguma.
Manipulação “por outros interesses”
Se estamos falando a mesma língua até aqui, você já deve ter concluído
que isso é perfeitamente compreensível. Afinal, o leitor do Globo
é aquele que celebra a Páscoa com a família, em casa ou num restaurante
de frutos do mar, não aquele que é despejado da favela pelo valor do
aluguel, do prédio ocupado pelo batalhão de choque e da frente da
prefeitura pela Guarda Municipal. O leitor do Globo é aquele que a igreja aguarda na sua celebração tradicional, não aquele para quem ela fecha a porta. Não que os leitores do Globo
não sejam caridosos, ao contrário: boa parte deles certamente faz
doações ao “Criança Esperança” e talvez até financie presentes de Natal
para os pobres bem comportados que aguardam calmamente do lado de fora.
Mas pobre que invade o que é dos outros, que ousa atravessar a cidade e
agredir a rotina alheia com a sua miséria não merece nem migalha nem
espaço naquela que dizem que é a casa de Deus, que dirá no lead da
notícia.
Por isso, depois de ter antecipado jornalisticamente a necessidade de
intervenção no prédio da Telerj, com a reportagem “Como nasce uma
favela”; de ter recebido informações privilegiadas sobre a ação policial
de desocupação e retribuído à altura com uma cobertura digna do gozo
das fontes oficiais e governos cujos interesses esse jornal representa, o
Globo pode simplesmente ignorar, como notícia, a ação que
expulsou os acampados da frente da prefeitura no meio da madrugada. Na
capa da edição de sábado (19/4), com variações na edição online, o Globo
escolhia seus próprios Judas para malhar e, jornalisticamente, chamava
atenção para o que realmente interessava. “Arquidiocese suspende
procissão por causa de invasores”, dizia a chamada.
A Igreja fez a sua parte, produzindo todos os insumos que um jornal mal
intencionado pode precisar: colocou nas costas dos ocupantes a culpa de
não terem aceitado a proposta de serem encaminhados para um abrigo –
uma ideia ótima, que só um religioso mais acostumado com a imagem
idílica do reino dos céus do que com a realidade mundana dos abrigos da
prefeitura faria, e ainda por cima em nome de Deus; lamentou ter visto
“violência, rancor, ódio e divisão no coração das pessoas”, qual ovelhas
perdidas por sentimentos ruins, não por uma realidade infernal; e, por
fim, quase como respondendo a uma encomenda, o arcebispo corroborou os
fantasmas com que o jornal tem diariamente assombrado seus leitores ao
afirmar que aquelas pessoas eram “manipuladas por outros interesses”,
como o Globo destacou na primeira página.
Valores e afetos
Como se sabe, desde junho de 2013 há muitos manipuladores,
financiadores de toda ordem e inúmeros “outros interesses” por trás de
tudo que acontece no Brasil. Contrariando a objetividade jornalística,
ninguém esclarece direito que interesses seriam esses nem muito menos
explica o que esses miseráveis estão ganhando para passar dias na rua
apanhando da polícia. Mas, pelo andar da carruagem, eu aposto que daqui a
pouco vai aparecer um dedo do PSOL e do PSTU, além de Garotinho e dos
traficantes de todos os comandos unidos, direita, esquerda e crime
organizado, todos unidos, pela primeira vez, para desestabilizar os
governos municipal e estadual desta lucrativa e miserável cidade
maravilhosa.
Mas esse era apenas o último capítulo da ficção de violência e suspense que o Globo
produziu sobre os sem-teto do Engenho Novo e seus agentes
manipuladores. Na cobertura da violenta ação de desocupação do prédio
feita pela polícia dias antes, a notícia do jornal era a “manhã de
tensão, medo e vandalismo” da qual os moradores dos bairros atingidos
pelos invasores não iriam se esquecer. Outro problema, outros
personagens.
Não pode restar dúvida de que, sob a aparentemente simples definição de
notícia, que orienta a prática jornalística contemporânea, esconde-se
uma verdadeira arquitetura de valores e hierarquias que são
ideologicamente naturalizadas e travestidas de interesse público. É
preciso, no entanto, atentar para o fato de que essas representações,
por mais estranhas que pareçam, não são propriamente falsas ou
desprovidas de qualquer relação com a realidade. Na vida real, fora das
páginas e imagens do jornal, essas pessoas, e esses problemas, são, de
fato, de segunda categoria; não têm lugar e têm uma existência tão
incômoda que precisam continuar invisibilizadas. E é só por isso, porque
esses valores e essa hierarquia são reais e muito convenientes, que
eles conseguem ter eco e ser eficazes entre os leitores e
telespectadores.
Com isso não absolvo a mídia; ao contrário, apenas tento compreender o
complexo mecanismo de mão dupla que faz com que as pessoas se permitam
acreditar, endossar a reproduzir preconceitos tão inverossímeis que não
resistem a dois questionamentos em sequência. Como alguém pode acreditar
que famílias com alguma condição saiam de qualquer lugar que estejam
para morar num cubículo de menos de 10m2 (tamanho dos barracos que foram
construídos no prédio da Telerj) por oportunismo? Ou, o que é pior, por
uma ingenuidade manipulada por oportunistas outros? Como alguém pode
supor que uma mãe passe noite seguidas com os filhos na rua porque quer?
Fácil: classificando essa mãe e essa criança como um outro tão outro
que não cabe nos nossos valores nem nos nossos afetos. Um outro para o
qual não cabe a preocupação e o cuidado que nós, classe média humanizada
e ilustrada, temos com os nossos filhos; como um outro tão outro e tão
brutalizado que não se importa de explorar e expor os filhos em proveito
próprio, mesmo que esse proveito seja uma moeda na calçada ou um
barraco numa favela qualquer.
Quando os fatos falarem por si
Com isso tento entender o esforço que um jornalista, mesmo imbecilizado
pelo cotidiano do trabalho numa redação de grande jornal e mediocrizado
pelo senso comum que o informa e pauta, precisa fazer para fingir que a
notícia não está na sua frente. Para não mencionar o déficit
habitacional do Brasil, que está na casa de 23 milhões de moradias,
segundo estudos mais recentes, que apontam cidades como São Paulo e Rio
nas cabeças. Para não reconhecer uma lógica simples de que se a classe
média está sendo expulsa da zona sul e outras áreas nobres pela
especulação imobiliária que tomou conta do Rio de Janeiro nos últimos
anos, os favelados, que estão na ponta dessa linha nada reta, estão
sendo expulsos para a rua.
Na mesma reunião em que ouvi a resposta que abre este texto, outra
jornalista explicou o processo de escolha das pautas do jornal
destacando que o principal era o interesse público. Perguntei, com
disfarçada ironia, que metodologia eles utilizavam para identificar esse
interesse e a resposta foi tão simples (e simplória) quanto a anterior:
sentavam juntos cinco ou seis jornalistas (todos de classe média
leitores de jornais semelhantes aos que eles próprios produzem) e
chegavam a um consenso.
Sabemos que em momentos de crise social explícita como o que estamos
vivendo desde junho passado as coisas não são tão simples assim, tanto
que, como em todas as coberturas supereditorializadas que o Globo
fez das principais manifestações, as matérias sobre a desocupação da
Telerj também não são assinadas, constando apenas, no final, o nome de
uma tropa de jornalistas que teriam participado da cobertura. Mas essa
não é a regra nem o único meio de fazer valer a visão invertida, nublada
e preconceituosa da sociedade noticiada nas páginas dos jornais e no
sorriso do William Bonner. Estabelecemos um macabro pacto diário, em que
a nossa desinformação garante a invisibilidade daqueles que não
queremos ver. E esse é o verdadeiro “interesse público” que compõe a
definição de notícia do jornalismo hoje.
O que essa grande mídia e seus ingênuos ou cúmplices trabalhadores da
notícia não perceberam é que público é também uma questão numérica,
quantitativa. E que a realidade objetiva dos muitos sem nada que
precisam ser vistos está progressivamente invadindo a ficção (inclusive
jornalística) dos poucos que não querem ver. Talvez esteja chegando a
hora em que nós, que estamos do outro lado do cinismo de um jornalismo
de classe que se disfarçou de interesse público, tenhamos que nos
desculpar da nossa descrença na objetividade jornalística que eles,
donos da informação e da verdade imparcial desse mundo, sempre pregaram.
Não vejo a hora de, com uma autocrítica humilde e um sorriso irônico,
ter que reconhecer, diante de uma realidade rebelde que mal caberá nos
jornais que, finalmente, os fatos vão falar por si.
***
Cátia Guimarães é jornalista
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