segunda-feira, 12 de maio de 2014

ISTOÉ Independente - GARANTIA DE ATRASO INTELECTUAL

ISTOÉ Independente - GARANTIA DE ATRASO INTELECTUAL

Paulo Moreira Leite

Como o estigma "chapa branca" impede o país de fazer um debate necessário sobre seu futuro



 Muitos
adversários do governo Lula-Dilma gostam de denunciar o Partido dos
Trabalhadores como um adepto das ideias de Antonio Gramsci, o lider do
Partido Comunista Italiano que, nas primeiras décadas do século XX,
formulou o conceito de hegemonia de classe.




 Convencido de que a tese do
assalto revolucionário ao poder, como havia ocorrido na revolução
bolchevique, de 1917, não poderia ser aplicada a todos os países,
Gramsci dizia que o partido da classe trabalhadora deveria aliar-se a
outras classes sociais, para formular uma política que lhe permitisse
governar em nome da nação.
    Para construir sua
hegemonia, dizia, o partido daquilo que se chamava classe oprimida, na
época, deveria formar seus próprios aparelhos ideológicos, seu corpo de
intelectuais,  seus centros de produção de cultura, seus jornais, seu
cinema, seu teatro – numa guerra de movimentos que lhe permitisse, em
determinado momento, colocar a conquista do poder. 
   É  verdade que inúmeros petistas, em vários momentos de sua existência, se debruçaram sobre as ideias de Gramsci.
    Mas quem pratica Gramsci,
no Brasil de 2014, é a elite que ocupa o poder. Ela busca, de modo
consciente, reforçar e manter a  hemegonia das ideias da sociedade,
atuando em todas as áreas.
     Como nós sabemos, não se
perdoa nem novelas, que se prestam a veicular valores e a divulgar
pontos de vista sob medida para seus interesses.
       Gramsci  ajudou a
entender, me conta um de seus estudiosos, que “a burguesia não precisa
de partidos políticos quando seus jornais funcionam direito.”
      Apesar desse
imenso aparato ideológico a seu serviço, a elite que tem o poder de
Estado e dirige o país desde o Descobrimento, com intervalos reais, mas
raros, nos quais nunca foi levada a abdicar de seus direitos
fundamentais, encontra-se numa posição de risco em 2014.       As
dificuldades parecem um pouco menores do que em eleições anteriores, é
verdade, mas sua perspectiva histórica segue complicada.
     As derrotas eleitorais se
acumulam desde 2002, em tres vitórias sucessivas para  um bloco político
que, sem nada de revolucionário nem de radical,  tem sido capaz de
realizar  tarefas históricas, que beneficiam o conjunto da sociedade.
São medidas que melhoram a distribuição de renda,  a geração de empregos
mesmo em situações desfavoráveis, a defesa dos trabalhadores e dos mais
pobres, sem falar medidas menos reconhecidas, mas importantes, em
outras áreas.
    Nesta situação, a elite defende sua hegemonia através de um estigma.
     Da mesma forma que
criminalizou os adversários políticos através da AP 470, um julgamento
de exceção com regras que jamais foram partilhadas com adversários
políticos de outras legendas, apanhados em circunstâncias idênticas e
até mais graves, procura-se atacar seus críticos com o palavrão “chapa
branca.”
     Com essa expressão,
tenta-se intimidar aliados do governo e colocar sob suspeita todo
esforço para registrar e debater dados e análises que mostram,
 objetivamente,  que as mudanças positivas ocorrida na vida da maioria
dos brasileiros nos últimos anos, superam, em muito, erros, falhas e
desvios  no mesmo período.
     Embora essa avaliação
favorável tenha recebido a concordância, em graus variados, de mais de
60% dos eleitores brasileiros,  usa-se o termo “chapa branca” para
destituir a legimitidade desse ponto de vista.
    Num país onde os
principais jornais apoiaram a ditadura militar. Curvaram-se diante de
Fernando Collor. Alegando que o fim da História havia chegado,
 mergulharam de cabeça nas privatizações de Fernando Henrique Cardoso,
chegando a imaginar até que poderiam levar sua parte em ações,
procura-se transformar em desvio moral-intelectual toda avaliação
positiva do  governo Lula-Dilma.
   Veja bem: estamos falando do
presidente mais popular da história, e da presidente-candidata que
lidera as pesquisas de intenção de voto.      Como se
vivessemos numa imprensa de comentaristas neutros, repórteres sem
ideologia ( “investigativos”) e editores equilibradíssimos,  a
divergência política tornou-se um pecado sem perdão e toda melodia
intelectual desafinada é colocada sob suspeita. 
     Na dificuldade para enfrentar um debate com dados e argumentos, procura-se impedir a discussão antes dela começar. 
     Neste esforço,
acentuado num ano de sucessão presidencial o plano está ficando claro.
Tenta-se convencer o eleitorado da ideia de que um retrocesso
conservador é não apenas necessário mas inevitável. Nessa narrativa,
todas as formas de pensamento devem ser niveladas por baixo.
      A formula está pronta e é
repetida como um estribilho de festa junina: o país não aguenta tantos
gastos excessivos e descontrolados. A inflação  está explodindo e um
arrocho terá de ser feito – qualquer que seja o novo presidente.
        O que se pretende neste côro é criar um ambiente conformista,  um fatalismo em bola de neve, para transformar as escolhas de 100 milhões de eleitores num ato acessório e no fundo dispensável.
       O problema,
como se sabe, não é um campeonato ideológico. Não se deve supor um mundo
perfeito. Não estamos no reino das utopias nem do marketing. Mas é
preciso fazer o teste da realidade.
        A inflação média é a
menor desde o Plano Real. O desemprego não aumenta e o salário sobe,
ainda que mais vagarosamente. O Brasil tem a quinta maior reserva em
divisas do mundo, volume compatível com o tamanho da nossa economia. O
mercado interno se comprovou como um dos grandes patrimônios do país.  O
poder de compra do salário mínimo nunca foi tão alto em décadas
recentes.  Com seus rendimentos, mesmo modestos sob qualquer critérios,
nossos aposentados são capazes de sustentar famílias inteiras em regiões
mais pobres do país. O combate ao racismo deixou o papel e se traduziu
em medidas concretas para criar novas oportunidades a população negra.
As mulheres avançaram em sua emancipação, que ainda não é completa,
auxiliada por vários fatores -- inclusive o Bolsa Família. 
     
        O uso frequente do
termo “chapa branca” é, ainda, um reflexo de um movimento autoritário
que procura se impor no debate político e definir limites ao convívio
democrático.  
       Descontando
os filósofos de butique que adoram anunciar o fim da divisão de direita e
esquerda como parte da liquidação do Natal de 1989, quando o muro de
Berlim caiu,  só a grande a hegemonia ideológica conservadora permite
que a direita sobreviva e se reproduza sem ousar dizer o seu nome.    
      Depois de
enriquecer e se reconstruir sob uma ditadura de 20 anos, que gerou
monstruosidades tão horrorosas que até hoje não foram investigadas nem
corrigidas inteiramente, “chapa branca” evita esse desconforto tão
inconveniente. Evita definições precisas e referências claras.
      Como a expressão remete a
governo – no passado, os carros oficiais tinham chapa branca – a
crítica  alimenta-se de uma retórica liberal, privatista, anti-Estado.
       É chique não ser “chapa branca”.
       Surgere independência,
ainda que isso seja um puro absurdo.  O acesso a grandes fortunas
privadas, que promovem e sustentam financeiramente o pensamento
conservador de  nossos dias, está longe de ser uma  garantia de isenção e
superioridade, vamos combinar.  
       Mas, num tempo em que a
privatização atingiu o nível cerebral,  fica sugestão de que ali  se
encontra mais inovação, mais autonomia, maior ousadia. Defender os
interesses dos mais ricos e poderosos chega a ser apresentado como ato
de coragem. 
      Nos Estados Unidos, os
adversário de Barack Obama gostam de acusar o New York Times, o mais
respeitado jornal do planeta, de ser governista demais – no dialeto
político local, o termo equivale a chapa branca. Ninguém leva essa
crítica muito a sério, porque ela é interesseira do ponto de vista
político. Quem espalha e divulga este estigma, e até faz campanhas de
boicote contra o jornal, são os núcleos duros do Partido Republicano,
que cresceram junto com o Tea Party.  Como Paul Krugmann demonstra com
clareza em sua coluna de hoje, o que se busca é uma forma de mentir à
vontade.
      Nenhum desses dados modifica uma discussão necessária sobre  a conjuntura do país.
       Mas permite colocar em
seu devido lugar um debate alarmista,   desequilibrado, sob encomenda
para tentar revogar as conquistas dos últimos anos com o argumento de
que o país vai explodir. Deu para entender, certo?

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