sexta-feira, 2 de maio de 2014

PRISAO NO 1 DE MAIO

ISTOÉ Independente - Paulo Moreira Leite

 







Paulo Moreira Leite

PRISAO NO 1 DE MAIO

"Só não me venham com mentiras", reagiu Maria Laiz, mãe de Genoíno, quando soube da volta do filho a prisão



      A
prisão de José Genoíno é um novo sinal político. Só durante a ditadura
os militantes do movimento operário eram presos no 1 de maio. Depois
disso, a data era respeitada. Havia um compromisso tácido, um respeito
por aqueles milhões de brasileiros que ajudaram a transformar o país
numa democracia.




     A
primeira a perceber o que se passava foi Maria Laiz Nobre Guimarães.
Aos 89 anos, ela  acompanhou o noticiário sobre a volta do primogênito à
Papuda pela TV parabólica da casa onde mora, em Encantado, no interior
do Ceará. Quando atendeu ao telefone, ficou com receio de que tentassem
amenizar sua dor:
--Só não me venha com mentiras, meu filho, disse ao deputado José Guimarães, irmão de Genoíno.
 Genoíno
retornou a Papuda no 1 de maio, data histórica dos trabalhadores,
depois de ter sido preso pela primeira vez em  15 de novembro, da
República.
 
 Justo Genoíno, que tentou organizar trabalhadores rurais no Araguaia,
onde seu partido, o PC do B, queria montar uma guerrilha contra a
ditadura militar. Que foi torturado. Que ajudou a aprovar as principais
leis a favor dos assalariados no Congresso, onde foi uma das lideranças
mais importantes desde a democratização. Que ajudou a incluir cláusulas
democráticas na Constituição.
   (E
que continuou vivendo com a dignidade de seus vencimentos de
parlamentar num sobrado comprado com financiamento da Caixa na Vila
Indiana, Zona Oeste de São Paulo).
     Veja
só. Ele foi condenado por corrupção ativa e cumpre pena de quatro anos e
oito meses. Genoíno embolsou algum no esquema? Nem um centavo. Colocou a
mão em algum trocado? Não. Entregou para alguém? Assinou os empréstimos
do PT. Sabe o que a PF concluiu? Que foram empréstimos legítimos,
entregues ao partido.  
     Este é o corrupto preso do 1 de maio.
     Como disse dona Maria Laiz: “só não me venha com mentiras, meu filho.”
     É mais  engraçado do que isso.
     Pimenta
da Veiga, um dos fundadores do PSDB, ministro das Comunicações no
segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, é hoje candidato ao
governo de Minas Gerais.
     A
Polícia Federal informa, desde 2006 – está lá, no inquérito 2474 que
ficou escondido dos ministros do STF até o julgamento da AP 470 --  que
Pimenta da Veiga recebeu R$ 300 000 das agências de Marcos Valério.
     Até
agora, Pimenta não foi julgado nem condenado. Já colheu um benefício: o
tempo trabalha para ele. A PF encontrou zero centavo a mais na conta de
José Genoíno. Também apurou as contas de familiares – e nada. O
ministério público atesta sua honestidade. Admite isso.
      Mas ele voltou a Papuda, ontem.
      O
dinheiro caiu na conta de Pimenta da Veiga muitos meses antes de várias
remessas da AP 470. Seu valor é maior até do que os R$ 296 000 que
Henrique Pizzolato mandou um auxiliar buscar no Banco Rural. Como já
lembrei aqui, é seis vezes maior que os R$ 50 000 que João Paulo recebeu
na mesma instituição. João Paulo disse que usou o dinheiro para fazer
pesquisas eleitorais e até encontrou uma testemunha para confirmar a
história. Pizzolato garante que não colocou a mão no dinheiro e mandou
para o PT. Acredite você no que quiser. A quebra do sigilo fiscal e
bancário de Pizzolato não conseguiu demonstrar que ele mentia.
    Pimenta
da Veiga, ao contrário de Pizzolato e de João Paulo, admitiu que o
dinheiro foi para ele. Explicou que eram honorários advocatícios.
    Ao
contrário de João Paulo, não apresentou documentos para provar o que
dizia além de sua própria palavra.  Quando os policiais perguntaram qual
era a causa  que poderia justificar honorários tão bons, Pimenta alegou
que fizera serviços internos para as agencias de Marcos Valério. Ele,
que acabara de deixar o ministério das Comunicações, três meses antes do
dinheiro entrar na conta, já estava advogando para as agencias do
valerioduto. Em serviços internos.
    Recebeu um dinheiro que, com algum reforço,  daria para  Genoíno comprar uma casa ao lado da sua.
 
   Se um dia Pimenta da Veiga se tornar réu, terá assegurado o direito a
um julgamento em segunda instância. Se tudo der errado, dará certo para
ele.
    Terá muito mais chances de provar seus pontos de vista. É o correto.
 
    Pela idade, tem 100% de chances de escapar das penas a que
eventualmente venha ser condenado porque já terá completado 70 anos,
quando a denúncia – se for feita – estará prescrita. Olha outro momento
de sorte. Outro azar de Genoíno. Ele completa 68 anos amanhã, na cadeia.
    
      Pimenta  recebeu
o dinheiro no início de 2003, meses depois de deixar o ministério.
Mesmo assim, está enquadrado no mensalão mineiro, que é de 1998. Deve
ser um milagre de denuncia retroativa.
 
   Confesso não saber se Pimenta é culpado de alguma coisa. Acho errado
pré condenar qualquer pessoa. Ele tem o direito de ser tratado como
inocente, até que se prove o contrário.  
      A discussão política, contudo, é útil.
     Numa
tentativa tosca para justificar o retrorno de Genoíno a prisão, Joaquim
Barbosa praticou um truque demagógico manjado. Apresentou estatísticas
que mostram o elevado número de prisioneiros  que têm doenças
semelhantes a de Genoíno e nem por isso cumprem regime domiciliar.
    É
um truque que se utiliza de dados verdadeiros para sustentar teses
falsas quando é conveniente. Não vamos lembrar os muitos momentos
históricos em que isso foi feito porque seria muito constrangedor. Basta
dizer que seu efeito é estimular o ressentimento e não a vontade de
Justiça. 
      Numa
homenagem ao 1 de maio,  não custa lembrar um episódio comum sob a
ditadura militar. Sempre que os trabalhadores faziam greve, os
amiguinhos dos generais na política e na imprensa diziam  que os
sindicatos eram egoístas, queriam dar aumento para quem já ganhava bem,
tinha carteira assinada, enquanto a maioria do povo vivia na miséria.
Entendeu, né? É por isso que aos 89 anos dona Maria Laiz sempre avisa
que não quer ouvir mentiras.
    Este
mesmo raciocínio se tenta aplicar hoje contra Genoíno. Todo mundo sabe
que ele sofre de uma cardiopatia grave, ainda que controlada. A
mortalidade de sua doença é alta, ainda que sua cirurgia de implante de
um tubo de PVC no peito tenha sido feita pelos melhores médicos do país.
     Qualquer
médico sabe que ele estará melhor em casa, em situação de melhor
conforto e cuidado, do que num presídio. Os médicos que examinaram
Genoíno discordam sobre a conveniencia de enviá-lo para a Papuda.
     A
maioria dos médicos que examinou Genoino deixou claro, por vias claras
ou indiretas, que as condiçoes de tratamento em casa são melhores. Elas
ajudam a explicar sua recuperação. É sintomático que ninguém tenha
ficado surpreso com o fato de que Joaquim Barbosa tenha optado pelo
laudo mais favorável ao encarceramento. Medicina? Não. Política. 
     Numa
atitude correta, mas cuja razão de fundo é fácil de adivinhar, Joaquim
autorizou o médico de Genoíno a entrar na Papuda a qualquer momento.  
 
   Se milhares de prisioneiros, com problemas de saúde equivalentes,
não conseguem cumprir prisão em regime domiciliar, embora tenham o mesmo
direito, a responsabilidade é do sistema prisional, do Estado, quem
sabe até do presidente do STF ou mesmo do ministro da Justiça. Só não
pode ser imputada a Genoíno, certo?     
     O
médico particular de Genoíno mediu sua cogulação e prova, com base em
laudos do laboratório Sabin, um dos mais respeitados de Brasília, que
seus índices estão abaixo da média recomendável. O índice de é de 1,7,
enquanto o recomendável fica entre 2 e 3.
     Os outros prisioneiros-pacientes da Papuda têm o mesmo atendimento? Têm o mesmo médico? É claro que não. Infelizmente.
 
   Da mesma forma, poucos brasileiros com dores lombares terríveis têm
direito a um tratamento caro e sofisticado para amenizar seu sofrimento.
Joaquim Barbosa teve, com recursos pagos pelo contribuinte. Tirou
licenças tão prolongadas no seu trabalho que chegou a ser criticado
publicamente por colegas. Descobriu clínicas modernas, tratamentos de
vanguarda.
     Está errado? Não. É um direito dos ministros do Supremo.
    A
desigualdade estrutural de um país não impede nenhuma pessoa de fazer o
que tiver a seu alcance – dentro da lei -- para defender seus direitos.
     É
errado culpar um indivíduo pelo conjunto de mazelas de uma sociedade. É
uma espécie de covardia retroativa. Um dos mais eruditos juizes da
Suprema Corte dos Estados Unidos, Antonio Scalia, de insuspeitas
credenciais conservadoras, deu uma lição inestimável para o debate
desses casos.       
    Lembrou que ninguém pode ser responsabilizado individualmente pelos erros das gerações passadas.
    
Num debate sério, produtivo, Genoíno deveria ser comparado com com
pessoas de condição equivalente. Por exemplo, Pimenta da Veiga.
      O
problema aí é um efeito desagradável. Na condição de relator da AP 470,
Joaquim Barbosa foi um dos responsáveis, ao  lado do procurador geral
Antonio Fernando de Souza, de manter o laudo 2474 em segredo de Justiça –
e ali  aparecia o curioso pagamento a Pimenta da Veiga.      
      
O ministro do STF Celso de Mello chegou a cobrar, em tom indignado, que
o 2474 fosse exibido aos ministros, antes do julgamento. Joaquim se
negou. Disse que não traria maiores novidades. Alegou que poderia
provocar novos atrasos. Foi uma pena.
 
    Na época  ninguém estava prestando a devida atenção ao julgamento. A
 maioria dos observadores apenas engrossava o coro de “Morte aos cães!”
que eles tanto condenavam quando era ouvido em tribunais stalinistas.
Mas seria curioso tomar conhecimento de casos fora do roteiro do “maior
espetáculo da terra.”
       
Imagine se, por acaso, alguém entrasse na página 179 do Relatório da
Polícia Federal, incluído no inquérito, e encontrasse o dinheiro para
Pimenta da Veiga. 
Quinze vezes mais do que o dinheiro recebido pelo
professor Luizinho que, após oito anos de massacre midiático, foi
inocentado.  
        Genoíno
pode, sim, ser julgado por seus atos e por suas ações políticas no
presente. E aí vamos combinar que poucos cidadãos brasileiros – dentro
ou fora prisão – construiram uma folha de serviços tão respeitável na
luta contra a desigualdade e pelo progresso dos mais pobres.
    
A postura combativa mesmo na prisão  lhe gerou punições suplementares
quando  Genoíno organizou um protesto pela morte de Vladimir Herzog, o
jornalista  assassinado no porão pela atividade militante no PCB, em
1975. Estimulados por Genoíno, os presos batiam nas grades, gritavam o
nome de Herzog, faziam todo barulho que conseguiam. Por causa disso,
Genoíno foi punido e enviado para o Ceará, onde teve de cumprir parte de
usa pena. Saiu arrastado da cela. 
     São
cenas corajosas, que ajudam a mostrar quem é quem e quem se tornou
quem, 39 anos depois. Que tristeza. Um assessor do PPS, sigla que herdou
o espólio do PCB, é o principal suspeito de cometer um ato lamentável
de provocação na Papuda: a filmagens clandestina de Dirceu enviada aos
jornais. Na mesma ocasião se disse que a cela de Dirceu – a mesma que
Genoíno ocupa desde ontem – oferece banho quente aos detentos. Mentira.
Canalhice. A água é fria, como de toda a Papuda – mas, no clima de
estimular o ressentimento, a falsa notícia foi até manchete de jornais.
Falando nisso: água quente é luxo? 
      
   Essa é a diferença, que salta aos olhos no 1 de maio. 
   -- Não me venha com mentiras, meu filho.

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