terça-feira, 6 de maio de 2014

Você acredita no que lê nos jornais?

Você acredita no que lê nos jornais? - | Observatório da Imprensa | Observatório da Imprensa - Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito



Você acredita no que lê nos jornais?


Por Venício A. de Lima em 06/05/2014 na edição 797


Credibilidade, no dicionário Aurélio, é a “qualidade do que é
crível”, isto é, “que se pode crer, acreditável”. É uma construção,
tanto para pessoas como para instituições e, claro, tem a ver com
compromisso reiterado com a verdade e coerência, no longo prazo.



A palavra escrita (não necessariamente, impressa), no correr dos
séculos, carrega com ela uma enorme credibilidade. Os judeus atribuem um
valor mágico à escrita. A Palavra (“No princípio era o Verbo”) foi
ditada diretamente de Deus a Moisés. Os muçulmanos têm a fórmula
“Maktub” ou “Maktoob” (estava escrito) para justificar o destino. Tanto
uns quanto os outros usam patuás ou amuletos (pequenas trouxas
costuradas de couro ou pano) contendo trechos da Torá ou do Alcorão para
proteção divina. Para a escola do positivismo jurídico, desde Bentham
até Kelsen, vale a norma que está escrita. Os direitos só se efetivam se
estiverem codificados, se forem escritos como leis. Ademais, o que está
escrito pode ser mais facilmente confrontado com os fatos e, supõe-se,
quem escreve não quer correr o risco de ser flagrado na mentira.



Muitas vezes se ignora que textos escritos que se tornaram referência
de credibilidade têm sua origem em tradições orais milenares, anteriores
a registros escritos. Além disso, desde que se pode “gravar” o que é
dito, a possibilidade de confronto com os fatos inclui também a palavra
falada, não só a palavra escrita.



No mundo moderno, os mediadores tecnológicos capazes de tornar as
coisas públicas, de forma centralizada, em diferentes plataformas (a
mídia oligopolizada), muitas vezes se tornam poderosos mais pelo que
omitem – isto é, “deixam” de falar, escrever e/ou mostrar – do que pelo
que falam, escrevem (publicam, de publicare, tornar público) ou mostram.



De qualquer maneira, ainda é relativamente comum, sobretudo entre
aqueles de gerações anteriores à dominância da mídia eletrônica –
cinema, rádio, televisão e, hoje, internet –, usar o argumento da
verdade associado ao fato de algo estar escrito e/ou publicado. Assim
como na subcultura popular da contravenção, “vale o que está escrito”.



A credibilidade dos jornais



Tudo isso vem a propósito de anúncio de meia página feito publicar pela
Associação Nacional de Jornais (ANJ) no Dia Mundial da Liberdade de
Imprensa, instituído pelas Nações Unidas em 1993 e, este ano, celebrado
no dia 3 de maio. O curto texto do anúncio introduz um neologismo:


“Credibiliberdade. Jornal. Onde credibilidade e liberdade andam sempre juntas.”
Para além da carga de credibilidade da palavra escrita (impressa),
secularmente impregnada na nossa cultura, aproveito o anúncio da ANJ
para algumas observações.



Escola Base de São Paulo



Por uma infeliz coincidência, o anúncio sobre a credibilidade dos
jornais aparece apenas um dia após a divulgação da morte de Icushiro
Shimada (ocorrida em 16 de abril), um dos donos da Escola Base. Como se
sabe, 20 anos atrás, os donos da escola que funcionava na zona sul de
São Paulo foram transformados publicamente em pedófilos pela grande
mídia, sem oportunidade de defesa. “Kombi era motel na escolinha do
sexo”, publicou em manchete o extinto Notícias Populares e “Perua escolar carregava crianças para a orgia”, foi manchete da também extinta Folha da Tarde, ambos jornais do Grupo Folha [cf. Alex Ribeiro; Caso Escola Base – Os Abusos da Imprensa; Editora Ática, 1995].



O triste caso da Escola Base certamente escapa à “credibiliberdade” dos jornais a que se refere o anúncio.



Jornais: preferência de apenas 1,5%



Talvez os criadores da peça publicitária tivessem a intenção de “pegar
carona” na divulgação recente (março de 2014) de uma pesquisa de hábitos
de mídia da população brasileira pela Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República (Secom-PR). Um dos capítulos do relatório
trata exatamente de “confiança na mídia” [capítulo 6, ver relatório completo aqui].



A pesquisa mereceu a devida atenção da grande mídia, em particular dos
jornais, que insistiram em dizer que eles são os veículos de maior
credibilidade. O jornal O Globo, por exemplo, em matéria sobre a pesquisa publicada no dia 7 de março afirma:


“Entre os entrevistados, 53% dizem confiar sempre ou muitas vezes no
que leem nos jornais impressos. 50% confiam nas notícias que ouvem no
rádio; 49% confiam nas notícias televisivas; 40% nas publicadas em
revistas; 28% nas que saem nos sites; 24% nas divulgadas pelas redes
sociais e 22% confiam nos blogs” [ver aqui].
Todavia, não é exatamente isso que revelam os dados. A base para a
pergunta “Gostaria de saber quanto o (a) Sr.(a) confia nas notícias que
circulam nos diferentes meios de comunicação” foi “apenas entrevistados
que usam o meio em questão (TV, rádio, jornal, revista e internet)”.
Vale dizer, os 53% que dizem confiar sempre ou muitas vezes nos jornais
impressos estão entre os 25% do total de entrevistados que declaram ler
jornais pelo menos uma vez por semana ou entre aqueles 1,5% (exatamente,
1,5%) que declaram ter no jornal seu meio de comunicação preferido.



Mesmo levando-se em conta que a avaliação da credibilidade de todos os
meios tinha como base “apenas entrevistados que usam o meio em questão
(TV, rádio, jornal, revista e internet)”, e que a credibilidade dos
“usuários” dos jornais impressos em relação ao jornal é maior do que a
dos usuários dos outros meios em relação a eles (TV, 50%; rádio 49%;
revistas 40%; sites; 28%; redes sociais, 24% e blogs, 22%), a
credibilidade real dos outros meios – à exceção das revistas –, em
números absolutos, é muito superior aquela dos jornais porque o número
de usuários é muito maior (TV, 97%; rádio, 61%; internet 47%).



Não será por distorções como essa na divulgação dos resultados da
pesquisa da Secom-PR que a preferência pela leitura de jornais impressos
(1,5%) só não é menor do que a preferência pela leitura de revistas
(0,3%)?



Parceria com 80 bi de cigarros/ano



Chama ainda a atenção no anúncio da ANJ o registro da Souza Cruz como
“Empresa Parceira”. Será que isso significa que a empresa dogrupo
British American Tobacco pagou a veiculação do anúncio?



A Souza Cruz/British American Tobacco é “a líder do mercado nacional,
que possui seis das dez marcas mais vendidas no Brasil e produz cerca de
80 bilhões de cigarros por ano e controla (2º semestre de 2012) 60,1%
do mercado total brasileiro”[ver aqui]. Ela tem sido a principal parceira da ANJ nas ações de defesa da chamada “liberdade de expressão comercial” [verSobre a ‘liberdade de expressão comercial’“].



Esse curioso conceito que transforma em equivalentes dois tipos
totalmente distintos de informação – a jornalística e a publicitária –
se ampara na falácia liberal conservadora de que o Estado autoritário
pretende “tutelar os consumidores, como se eles não tivessem capacidade
de decidir o que querem consumir”, para combater a norma constitucional e
a Lei nº 10.167, de 27 de dezembro de 2000, que “dispõe sobre as
restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, bebidas
alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas”.



Está no capítulo V (Da Comunicação Social) do Título VIII (Da Ordem Social) da Constituição de 1988:


Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º – Compete à lei federal:
(...)
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e
televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda
de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao
meio ambiente.
§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais,
nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que
necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
Nunca é demais lembrar a dimensão social do problema contido no tabagismo. Estudo recente realizado pela Aliança de Controle do Tabagismo (ACT)
revela que “o Brasil gasta em torno de R$ 21 bilhões no tratamento de
pacientes com doenças relacionadas ao cigarro. O tabagismo é responsável
por 13% das mortes no País. São 130 mil óbitos anuais, sendo (350 por
dia). Dados do Ministério da Saúde indicam que a fumaça do cigarro reúne
cerce de 4.700 substâncias tóxicas diferentes, muitas delas
cancerígenas” [ver aqui].



Será que a “credibiliberdade” dos jornais se constrói combatendo normas
legais expressas em decisões da Agência de Vigilância Sanitária
(Anvisa), em restrições a anúncios de cigarros e à propaganda de
alimentos e produtos dirigidos a crianças?



“Credibiliberdade”



Por fim resta um breve comentário sobre a afirmação de que nos jornais “credibilidade e liberdade andam sempre juntas”.



Se o conceito de liberdade se refere à liberdade que os dos donos de
jornal têm de imprimir o que querem de acordo com seus interesses
privados – notícias, entretenimento e anúncios – não poderia haver
equívoco maior.



As bases sobre as quais se funda a credibilidade do leitor(a) têm a ver
com uma “outra” liberdade. Uma liberdade que é também um direito e
atende ao interesse público: ser informado corretamente, sem inverdades,
sem omissões e sem distorções.



***


Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de
Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do
Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e
organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A lei argentina, o relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu Abramo/Maurício Grabois, 2014; entre outros livros


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