segunda-feira, 26 de maio de 2014

'Se o sistema não mudar, pode quebrar' - Folha de Londrina

'Se o sistema não mudar, pode quebrar' - Folha de Londrina - O Jornal do Paraná - Brasil



'Se o sistema não mudar, pode quebrar'

Médico americano alerta
que o atual modelo brasileiro de saúde, focado em especialidades, é
inviável financeiramente e não satisfaz população


Um sistema caro, com pacientes
infelizes. Em linhas gerais, esta é a definição do atual sistema de
saúde brasileiro (nas redes pública e suplementar) feita pelo médico
norte-americano Robert Janett, professor da Harvard Medical School.


Integrante da Cambridge Health Alliance, rede de serviços de
saúde, composta por clínicas e hospitais que adotam o sistema de Atenção
Primária à Saúde (APS), em Boston, Janett esteve em Londrina no último
final de semana para participar do 8º Fórum Anual de Planejamento
Estratégico da Unimed Londrina. O médico tem sido a referência técnica
da cooperativa médica para implantar projetos-piloto de APS em várias
regiões do Brasil. Estudioso do assunto há mais de 30 anos, Janett é
taxativo: "Se o sistema não mudar, pode quebrar".


O conceito de APS surgiu no final da década de 1970, como uma
diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS). A ideia é oferecer um
atendimento focado nas necessidades do paciente, por meio de equipe
multidisciplinar, que fica responsável por um grupo de pessoas e o
acompanha ao longo de anos, o que resulta, inevitavelmente, em uma
relação de amizade e confiança.


O modelo é bem diferente daquele que predomina atualmente no
País, onde para cada problema de saúde o indivíduo tem um médico
diferente. O resultado são muitas e diferentes prescrições, excesso de
exames e relações menos humanizadas entre médicos e pacientes. O
Programa Saúde da Família (PSF), implantado pelo Ministério da Saúde em
1994, é reconhecido e elogiado por Janett, mas para o estudioso a falta
de investimentos nos profissionais, somada a outras falhas, impede a
obtenção de melhores resultados.


Por que o senhor acredita que o modelo de Atenção Primária à Saúde é o melhor?


Os custos de saúde no Brasil estão aumentando em níveis
insustentáveis. Um dos motivos é a mudança da epidemiologia da
população, que hoje apresenta altas taxas de mortalidade por doenças
crônicas, e não apenas doenças agudas, como era no passado. Este é um
fenômeno global ligado ao desenvolvimento. Quando o Brasil entrou na
época moderna, com mais lucros, a sociedade toda sofreu transformações,
mudou a maneira de comer, de se exercitar, levando ao aumento das
doenças crônicas. Só que o sistema de saúde foi organizado originalmente
para atender doenças infecciosas, acidentes, traumas. Estes problemas
continuam existindo, mas o que temos que fazer agora é organizar o
atendimento também às doenças crônicas. Outro motivo para o aumento de
custos são as falhas nos serviços preventivos e de vigilância à saúde. E
se há falhas, vão aparecer doenças que poderiam ser evitadas. Além do
trauma para o paciente e sua família, doenças como câncer, diabetes,
quando não prevenidas ou controladas, significam gastos que poderiam ser
evitados. Com serviços bem organizados, motivados e equipes
multidisciplinares, podemos diminuir as complicações, o sofrimento das
pessoas e o gasto global com saúde.


Quais são as principais falhas do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e do Programa Saúde da Família (PSF), na sua opinião?


Admiro o sistema público de saúde do Brasil. É um dos maiores do
mundo em termos de justiça, de cobertura universal e de atendimento às
pessoas, independentemente da situação econômica de cada um. O modelo do
PSF também é muito bom. Mas eu diria que a primeira falha é a falta de
recursos. Um médico do PSF hoje é responsável por cerca de 5 mil
pacientes. No modelo que adotamos nos Estados Unidos um médico tem
responsabilidade sobre 2 mil pacientes. É impossível dar a mesma
qualidade de atendimento com uma agenda tão cheia. Outra falha é não dar
opção de escolha ao paciente: o médico é definido por região, por
bairro da cidade. Não importa se o paciente não se identifica com este
profissional, não tem outra opção. O modelo que propomos é que vários
médicos trabalhem na mesma região, dando ao paciente a opção de escolher
o melhor médico para ele, de acordo com suas necessidades,
personalidade, interesses e emoções, porque cada pessoa é única. A
principal mudança no atual modelo deve ser esta: em vez de um sistema
centrado no médico, um sistema centrado no paciente. Essa é uma mudança
cultural difícil, mas deve ser a meta.


Mas esta mudança geraria um grande impacto, inclusive nos cursos
de medicina, que hoje estão adaptados ao modelo centrado em médicos
especialistas. O senhor concorda?


Sim, sabemos que não é fácil mudar. Os fatores que provocam as
especializações hoje no Brasil são verdadeiros. Mas temos que ter uma
visão de futuro, em que a posição do médico de família seja superior,
que ele tenha mais prestígio e melhor salário. Porque para o médico,
escolher uma especialização que pague 50% mais que o PSF é uma escolha
racional. Temos que entender que para melhorar os resultados do sistema
de saúde temos que reformar o seu modelo. Mas temos também que andar
antes de voar, por isso estamos propondo projetos-piloto, com uma boa
base de dados, com indicadores que comprovem os benefícios deste modelo
em relação ao anterior. Foi o que fizemos nos Estados Unidos, e com isso
a procura por prontos-socorros diminuiu em mais de 30%, a permanência
de dias no hospital teve uma queda de mais de 33% e o custo global de
saúde diminuiu em mais de 15%. Isto é bastante dinheiro, que pode ser
reinvestido na melhoria da assistência.


Além disso, os pacientes ficam mais satisfeitos e os resultados
relacionados às doenças crônicas são muito melhores. Nossa taxa de
internação por diabetes, por exemplo, diminuiu em 30% com o programa de
controle que implantamos. Também caiu nossa taxa de internação por asma.
No começo do projeto de atenção primária, o índice de crianças com a
doença internadas por ano era de uma a cada 10. Após cinco anos do
programa, a taxa de internação é quase zero. Isso porque não estamos
mais passivos, esperando os clientes virem às nossas clínicas, temos um
programa de busca ativa: mandamos lembretes a eles sobre uso de
medicamentos e outros cuidados, identificamos por nosso sistema de
informática pacientes que 'estão fora da linha'(que não estão
comparecendo às consultas e não estão buscando seus medicamentos nas
farmácias, por exemplo). E para pacientes de alto risco enviamos
serviços especializados para assistir e coordenar sua participação no
programa de saúde. Dados epidemiológicos e econômicos mostraram que 3%
da nossa população consumia 50% do gasto médico no país. Essa situação
nos levou a trabalhar em dois eixos: em um deles, fazer o que for
possível para oferecer à população acima da linha (de risco) vigilância
em saúde, prevenção e gestão da doença crônica para que se mantenha sem
complicações, por evidência e com confiabilidade. Em outro, para a
população abaixo da linha, coordenar os serviços de forma que estas
pessoas tenham acesso a serviços de alta complexidade tecnológica,
baseados em evidências e ainda com garantia de ser bem tratadas. É
maximizar o atendimento aos pacientes de alto risco e oferecer serviços
de alta confiabilidade à população mais saudável.


Há quantos anos o modelo de atenção primária foi adotado nos Estados Unidos e qual a sua abrangência hoje no país?


Começamos a adotar o sistema há cinco anos, e neste tempo já
obtivemos todos estes resultados positivos citados. Não sei dizer qual a
porcentagem da população que já utiliza o modelo de atenção primária,
ainda há muitos centros no modelo antigo. O que posso garantir é que
trata-se de um modelo inovador.


O senhor acredita que não há outro caminho viável para a saúde, no futuro?


Não tenho dúvidas disso. Porque se continuar no atual sistema, o
futuro é cheio de sombras. Os gastos estão subindo, a expectativa de
vida dos pacientes está aumentando e eles não estão satisfeitos com o
atual sistema. Hoje há duas opções: cortar serviços para controlar os
gastos ou aumentar os serviços para diminuir as falhas. Acho que esta
última é a escolha óbvia.


Os Estados Unidos espelharam-se em outros modelos para implantar seu próprio sistema de atenção primária?


Conhecemos sistemas implantados em vários países, como Espanha,
França, Inglaterra, Suécia, cada um com suas especificidades. O que é
certo é que cada sistema que funciona bem tem um modelo forte de atenção
primária. Sistemas sem atenção primária forte são fracos.

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