Dia das Mães: Precisamos mesmo destruir o passado para poder ir adiante?
Leonardo Sakamoto
Por
décadas, minha avó morou de aluguel em uma casinha, onde passava os
dias entre a máquina de costura e os cuidados com o cachorro. Hoje, a
casa, bem como minha avó, são apenas lembranças de um outro tempo.
Dia
desses, andando por aquela rua, parei por uns momentos diante do prédio
imponente que foi erguido no lugar. Seu número é o mesmo da casinha,
coisa que não dá para esquecer porque minha mãe o havia usado como senha
de sua conta – coisa que decorei pela eternidade por conta das vezes
que tive que ir até o banco tirar um extrato para ela.
Mas só. O
lugar é chique, com tudo muito bem arrumadinho, em nada lembrando a
bagunça que sempre havia na frente da casa da velha italiana de cabeça
quente. Em pouco tempo, seguranças me mediram da cabeça aos pés e diante
de um “estou apenas olhando, minha vó morava aqui”, franziram a testa,
perguntando com sobrancelhas arqueadas em qual apartamento ela residia.
Talvez querendo checar a incongruência da declaração. Como se a história
daquele lugar tivesse começado com o nascimento do prédio.
Despeço-me
com um sorriso curto mas ainda em tempo de ver um morador conversando
com o segurança através de um alto-falante, sem precisar (ou desejar)
abrir a janela de seu carro, na entrada da garagem.
O sapateiro
que ficava em frente não existe mais. Muito menos a avícola no canto da
rua, o clube onde os mais velhos se reuniam para jogar bocha e o
tintureiro japonês e gente boa. A loja de armarinhos onde eu ia comprar
linhas para a minha avó também sumiu, bem como o boteco que vendia ovo
azul e sarapatel. Hoje, há um caro restaurante. Velhas senhoras que
ficavam fofocando na rua, gritando com seus netos que corriam atrás de
bolas, também se foram. E, com a quantidade de prédios altos que se
ergueram, o céu e o horizonte também tiveram que se mudar para outro
lugar.
Os dois moram hoje em alguns lugares da periferia, mas não por muito tempo. Dizem que também querem enxotá-los de lá.
Um
conjunto de fatores levou minha avó embora O atestado de óbito falava
em insuficiência cardíaca e respiratória. Os médicos culparam sucessivos
derrames, agravados pelo Parkinson. Mas eu, que acompanhei a sua
história de perto, acho que há um outro elemento não levado em conta.
Ela começou a morrer no dia em que, de repente, teve que sair da casa
que viveu boa parte da vida para dar lugar ao prédio alto e bonito.
Levada
para longe do cachorro, das clientes, da avícola, do clube, do
tintureiro, da loja de linhas, do boteco, das velhas amigas e seus
meninos, ela foi separada de coisas que lhe faziam sentido. O ser humano
é bicho adaptável, decerto. Ele se reergue, ainda mais tendo o
horizonte e o céu a lhe fazerem companhia. Afinal de contas, São Paulo é
força criadora. E para criar, é necessário antes destruir, correto?
Lembro-me
do ensaio “O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento”, de
Marshall Berman. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as
sensações do mundo. Mas, no texto, o diabo não é o Lúcifer da
cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor
capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto (“destruir para
criar”) é a realidade do constante movimento. Mefistófeles perguntava a
ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para
poder criar o mundo…
No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia,
um casal de idosos. Eram um problema para os planos do empreendedor
Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da
dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor
exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o
mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade cresça.
E
o desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria
para si mesmo. Por exemplo, fazendo crer que a necessidade do bem-estar
de muitos suplanta a garantia da dignidade de alguns.
O
crescimento da cidade tem sua dinâmica, claro. Mas não deveríamos
esquecer que ela não é feita de pedra e cimento, mas do conjunto de
histórias de sua gente. É natural que biografias deem lugar a outras. O
problema é como isso é feito. Apagando o passado como se ele não tivesse
existido ou construindo a partir dele.
Não acredito em
imortalidade, mas sei que, pelo menos, minha avó seguirá costurando e
brincando com o cachorro enquanto eu e meu irmão, seus únicos netos,
ainda estivermos por aqui. Por mais que vá ficando nublada com o tempo, a
memória dos que se foram não se apaga como casa demolida. Memória que
alimenta a esperança de que, em algum momento, faremos da cidade um
lugar melhor para se viver.
Feliz Dias das Mães.
décadas, minha avó morou de aluguel em uma casinha, onde passava os
dias entre a máquina de costura e os cuidados com o cachorro. Hoje, a
casa, bem como minha avó, são apenas lembranças de um outro tempo.
Dia
desses, andando por aquela rua, parei por uns momentos diante do prédio
imponente que foi erguido no lugar. Seu número é o mesmo da casinha,
coisa que não dá para esquecer porque minha mãe o havia usado como senha
de sua conta – coisa que decorei pela eternidade por conta das vezes
que tive que ir até o banco tirar um extrato para ela.
Mas só. O
lugar é chique, com tudo muito bem arrumadinho, em nada lembrando a
bagunça que sempre havia na frente da casa da velha italiana de cabeça
quente. Em pouco tempo, seguranças me mediram da cabeça aos pés e diante
de um “estou apenas olhando, minha vó morava aqui”, franziram a testa,
perguntando com sobrancelhas arqueadas em qual apartamento ela residia.
Talvez querendo checar a incongruência da declaração. Como se a história
daquele lugar tivesse começado com o nascimento do prédio.
Despeço-me
com um sorriso curto mas ainda em tempo de ver um morador conversando
com o segurança através de um alto-falante, sem precisar (ou desejar)
abrir a janela de seu carro, na entrada da garagem.
O sapateiro
que ficava em frente não existe mais. Muito menos a avícola no canto da
rua, o clube onde os mais velhos se reuniam para jogar bocha e o
tintureiro japonês e gente boa. A loja de armarinhos onde eu ia comprar
linhas para a minha avó também sumiu, bem como o boteco que vendia ovo
azul e sarapatel. Hoje, há um caro restaurante. Velhas senhoras que
ficavam fofocando na rua, gritando com seus netos que corriam atrás de
bolas, também se foram. E, com a quantidade de prédios altos que se
ergueram, o céu e o horizonte também tiveram que se mudar para outro
lugar.
Os dois moram hoje em alguns lugares da periferia, mas não por muito tempo. Dizem que também querem enxotá-los de lá.
Um
conjunto de fatores levou minha avó embora O atestado de óbito falava
em insuficiência cardíaca e respiratória. Os médicos culparam sucessivos
derrames, agravados pelo Parkinson. Mas eu, que acompanhei a sua
história de perto, acho que há um outro elemento não levado em conta.
Ela começou a morrer no dia em que, de repente, teve que sair da casa
que viveu boa parte da vida para dar lugar ao prédio alto e bonito.
Levada
para longe do cachorro, das clientes, da avícola, do clube, do
tintureiro, da loja de linhas, do boteco, das velhas amigas e seus
meninos, ela foi separada de coisas que lhe faziam sentido. O ser humano
é bicho adaptável, decerto. Ele se reergue, ainda mais tendo o
horizonte e o céu a lhe fazerem companhia. Afinal de contas, São Paulo é
força criadora. E para criar, é necessário antes destruir, correto?
Lembro-me
do ensaio “O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento”, de
Marshall Berman. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as
sensações do mundo. Mas, no texto, o diabo não é o Lúcifer da
cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor
capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto (“destruir para
criar”) é a realidade do constante movimento. Mefistófeles perguntava a
ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para
poder criar o mundo…
No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia,
um casal de idosos. Eram um problema para os planos do empreendedor
Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da
dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor
exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o
mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade cresça.
E
o desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria
para si mesmo. Por exemplo, fazendo crer que a necessidade do bem-estar
de muitos suplanta a garantia da dignidade de alguns.
O
crescimento da cidade tem sua dinâmica, claro. Mas não deveríamos
esquecer que ela não é feita de pedra e cimento, mas do conjunto de
histórias de sua gente. É natural que biografias deem lugar a outras. O
problema é como isso é feito. Apagando o passado como se ele não tivesse
existido ou construindo a partir dele.
Não acredito em
imortalidade, mas sei que, pelo menos, minha avó seguirá costurando e
brincando com o cachorro enquanto eu e meu irmão, seus únicos netos,
ainda estivermos por aqui. Por mais que vá ficando nublada com o tempo, a
memória dos que se foram não se apaga como casa demolida. Memória que
alimenta a esperança de que, em algum momento, faremos da cidade um
lugar melhor para se viver.
Feliz Dias das Mães.
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