segunda-feira, 12 de maio de 2014

Obsoletos

Obsoletos


Veríssimo - O Estado de S.Paulo
O problema é que de todas as coisas sucateadas com a automatização da
indústria, a única que não se adaptou nem se resignou foi a mão de obra.
Ela se tornou obsoleta mas não seguiu o caminho dos outros componentes
da produção antiga para a extinção. Continua sendo produzida como se
ainda tivesse uso. Tem o mesmo formato e o mesmo sistema de
funcionamento - pernas, braços, pulmões, coração, circulação sanguínea -
que tinha há milhares de anos. Ainda precisa ser alimentada do mesmo
jeito, ainda transforma o que ingere em energia e elimina o que não
aproveita, poluindo o ambiente, como antigamente.
*
Não houve mudança significativa no desenho estrutural do ser humano
desde o aparecimento do dedão opositor, e isto foi há séculos. Só o
pseudocomputador que ele chama de cérebro teve algumas alterações, mas
são quase imperceptíveis. Todos os outros instrumentos da produção
industrial ultrapassada foram se modificando com o passar dos anos ou
simplesmente dando lugar a mecanismos mais eficientes e rentáveis. O
homem não se adaptou nem aceitou sua substituição. Continua se
reproduzindo, enchendo o mercado de obsoletos iguais a ele.
*
Estou digitando este texto num computador e pensando que o que meus
dedos escrevem serve como metáfora para o que aconteceu com o mundo.
Antes, o que eu batia no teclado de uma máquina de escrever - que já
era, sozinha, uma metáfora para o século 19 - era rebatido por um
operador de linotipo, um híbrido de máquina de escrever e usina
metalúrgica de onde saíam as minhas linhas transformadas em chumbo.
Depois de uma revisão, as linhas voltavam ao linotipista para serem
emendadas, depois eram montadas numa matriz da qual faziam o "flan", um
papelão que enchiam de chumbo para fazer a chapa encurvada que montavam
na rotativa que imprimia o jornal. A passagem da composição "quente",
nas fumegantes linotipos para a composição "a frio", fotográfica, que
virava chapa para rotativa em "offset", sem a intermediação do chumbo,
simbolizou o fim de um ciclo industrial e o prenúncio do mundo
robotizado que viria. A produção com sangue quente dava lugar à produção
volatizada. Hoje, o texto pode passar do meu computador para o
computador que comanda a rotativa intocado por mãos humanas. A impressão
digital sem impressões digitais.
*
As velhas linotipos, até pelo seu tamanho desajeitado, lembram
dinossauros que sobreviveram a sua era, andando por aí, atrasando o
progresso do planeta. Seres humanos sem lugar na pós-indústria são como
esses monstros hipotéticos. Sua era passou e eles não se flagram. O que
fazer com eles? Pode-se limitar seu acesso à alimentação, o que, dado o
seu sistema primitivo de metabolismo, os condenaria à extinção em poucas
gerações. Mas existiria o perigo de eles começarem a comer qualquer
coisa, inclusive nossos computadores e inclusive nós.

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