sábado, 10 de maio de 2014

Possuir ou Partilhar?

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Possuir ou Partilhar?

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Espalham-se pelo mundo serviços de compartilhamento de casas,
quartos, carros, outros objetos. Novo modelo de negócio? Ou sinais de
pós-capitalismo?



Por Martin Denoun e Geoffroy Valadon*, no Le Monde Diplomatique francês | Tradução: Inês Castilho


“Na casa de cada um de nós existe um
problema ambiental com potencial econômico. Temos vários objetos que não
utilizamos: uma furadeira dormindo no armário que não será usada por
mais de 13 minutos, em média, durante toda a vida; um DVD já sem uso
ocupando espaço, a câmera que atrai mais poeira que luz, mas também o
carro que usamos solitariamente menos de uma hora por dia ou o
apartamento vazio durante todo o verão. A lista é longa. E representa
uma quantidade impressionante de dinheiro, assim como de lixo futuro.”
Este é, essencialmente, o argumento de
teóricos do consumo colaborativo. Pois, como sustenta com um grande
sorriso Rachel Botsman (1), uma de suas lideranças, “você precisa do
buraco, não da broca; da projeção, não do DVD; da viagem, não do
carro!”…
Jeremy Rifkin
foi quem diagnosticou a transição de uma era da propriedade para uma
“era do acesso” (2), na qual a dimensão simbólica dos objetos diminui em
benefício de sua dimensão funcional: um carro costumava ser elemento de
status que justificava sua compra para além do uso, enquanto agora os
consumidores começam a alugar o seu veículo.
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Hoje, os jovens propõem alugar seus
próprios carros ou casas. Se isso causa desespero a muitos empresários
de transportes ou hotelaria, outros veem com esperança esse desapego com
relação aos objetos de consumo. Plataformas de troca possibilitam uma
melhor alocação de recursos; elas atomizam a oferta, eliminam
intermediários e facilitam a reciclagem. Ao fazer isso, corroem
monopólios, provocam redução de preços e trazem novos recursos aos
consumidores. Estes serão levados a comprar bens de qualidade, mais
duráveis, incentivando a indústria a abandonar a obsolescência
programada. Seduzido por menores preços e pela conveniência dessas
relações pessoa-a-pessoa (P2P, peer to peer), eles contribuem para a redução de resíduos. A imprensa internacional, do New York Times ao Le Monde, passando pelo Economist, já fala em “revolução do consumo.”
Um passe de mágica
Os partidários do consumo colaborativo
estão frequentemente entre os desiludidos com o “desenvolvimento
sustentável”. Contudo, embora reprovem a superficialidade deste
conceito, não costumam criticá-lo mais acidamente. Citando especialmente
Rifkin, nunca evocam a ecologia política. Mencionam de bom grado
Mohandas Gandhi: “Há atualmente na Terra recursos suficientes para
atender às necessidades de todos, mas eles não serão jamais suficientes
para satisfazer os desejos de posse de alguns (3).” Isso não os impede
de manifestar uma espécie de desdém com relação aos adeptos do
decrescimento e ativistas ambientais em geral, percebidos como utopistas
marginais e sobrepolitizados.
“Foi em 2008 que
batemos contra a parede. Juntos, a Mãe Natureza e o mercado disseram
‘basta’. Bem sabemos que uma economia baseada no hiperconsumo é um
esquema Ponzi (4), um castelo de cartas”, argumentou Botsman numa
conferência TED (Tecnologia, Entretenimento e Design) (5).
De acordo com ela a crise, ao fazer com
que as pessoas se esforçassem para sobreviver, teria causado uma
explosão de criatividade e confiança mútua que supostamente detonou o
fenômeno do consumo colaborativo (6).
Mais e mais sites propõem a troca ou aluguel de bens “adormecidos” e caros: máquina de lavar roupa, roupas de marca, objetos high-tech,
equipamento de camping, mas também meios de transporte (carro, moto,
barco) ou espaços físicos (adega, estacionamento, sala etc). O movimento
chega a ser quase uma poupança: ao invés de deixá-la inerte numa conta,
as pessoas a compartilham, escapando dos bancos (7).
Na área de transportes, o uso
compartilhado de automóveis consiste em dividir o custo de um trajeto;
uma espécie de carona organizada e contributiva, que permite, por
exemplo, viajar de Lyon a Paris por 30 euros, contra 60 euros da
passagem de trem, e conhecer pessoas novas durante o trajeto.
Diversos sites que propõem esse serviço surgiram na França nos anos
2000. Isso levou à evolução típica das startups
da internet: uma luta para estabelecer-se como referência de
gratuidade, para, uma vez alcançada essa posição, impor aos usuários uma
comissão de 12% “para maior segurança”. O número um francês,
Covoiturage.fr, transformou-se em BlaBlaCar para embarcar na conquista
do mercado europeu, e seu equivalente alemão, Carpooling, chegou à
França. Enquanto os co-usuários habituais, enfurecidos pelo escorregão
mercantil do site francês, lançaram a plataforma colaborativa e gratuita
Covoiturage-libre.fr [algo como "Coautomóvel-livre"].
A partilha de carros reflete também um avanço cultural e ecológico. Plataformas como Drivy
possibilitam a locação de veículos entre indivíduos, muito embora os
atores dominantes do mercado sejam ainda empresas flexibilizadas
(aluguel por minuto e self-service), que têm sua própria frota. A
redução anunciada no número de veículos é relativa, portanto. Mesmo a
frota Autolib’, criada pela prefeitura de Paris com o grupo Bolloré e inspirada no Vélib‘ [para compartilhamento de bicicletas], substitui transporte, mais do que elimina carros (8).
No que diz respeito à hotelaria, a internet também
favoreceu o impulso das trocas entre particulares. Vários sites (9)
permitem contatar uma multidão de anfitriões dispostos a receber pessoas
em suas casas por algumas noites, gratuitamente – e isso em quase todos
os países. Mas o fenômeno do momento é o “bed and breakfast” informal e
cidadão e seu líder indiscutível, Airbnb.
Ele permite passar a noite em Atenas ou Marselha e vai mimá-lo com um
generoso café da manhã “opcional” por um preço inferior ao de um hotel.
Um quarto vazio em sua casa ou mesmo seu próprio apartamento, quando
sair de férias, pode tornar-se uma fonte de renda. Em poucas palavras:
“Airbnb: viaje como ser humano”. Na imprensa econômica, contudo, o
serviço mostra uma outra face. Ele orgulha-se de capturar mais de 10% do
valor pago ao anfitrião, e ver o volume de negócios, de US$ 180 milhões
em 2012, aumentar tão rápido quanto a capitalização na Bolsa, de quase
US$ 2 bilhões.
Em cartum, o duplo sentido da nova tendência...
Em cartum, o duplo sentido da nova tendência…
“A riqueza está mais no uso que na posse – Aristóteles”, proclama a empresa de uso compartilhado de carros City Car Club.
Mas, visto mais de perto, o desapego da posse diagnosticado por Rifkin
não parece incluir o desapego do consumo: se no passado o sonho era
possuir uma Ferrari, o de hoje é dirigir uma. E, se as vendas diminuem,
aumentam os aluguéis. Esta “era do acesso” revela uma mutação das formas
de consumo ligada a uma mudança logística: a circulação de bens e
habilidades pessoais por meio de interfaces eficientes da web. Longe de
assustar-se, as empresas veem nesta diluição um potencial de novas
operações, nas quais elas serão os intermediários remunerados.
De um lado, isso possibilita aumentar a
base de consumidores: quem não tinha meios para comprar um objeto caro
pode agora alugá-lo. De outro, a comercialização estende-se à esfera
doméstica e aos serviços entre particulares: o quarto de um amigo ou um
assento no carro podem ser oferecidos para alugar, bem como uma mãozinha
no encanamento ou no inglês. Podemos também antecipar o mesmo efeito do
setor de energia, no qual a redução de gastos resultante de avanços
tecnológicos leva ao aumento no consumo (10): a renda que uma pessoa
ganha com o aluguel do seu projetor vai incentivá-la a gastar mais.
No entanto, existem novas práticas que irão reverter o consumismo. São muito diversas: os couchsurfers
(literalmente, “surfistas de sofá”) permitem que desconhecidos durmam
gratuitamente em suas casas ou desfrutem de sua hospitalidade. Os
usuários do Recupe.net ou do Freecycle.org
preferem doar a jogar fora objetos que não têm mais utilidade. Nos
sistemas locais de trocas (SEL, na sigla em francês), as pessoas
oferecem suas competências em base igualitária: uma hora de jardinagem
vale uma hora de encanamento ou design. Em associações para a manutenção
de uma agricultura camponesa (AMAP, na sigla em francês), cada um
assume o compromisso de abastecer-se por um ano com o mesmo agricultor
local, com quem pode desenvolver um relacionamento, e participar
voluntariamente da distribuição semanal de legumes. Esse compromisso
relativamente obrigatório reflete uma abordagem que vai além da simples
ação de consumo, que consiste em “escolher com a carteira”.
Qual o ponto em comum entre esses
projetos associativos e as empresas da distribuição C2C — de consumidor
para consumidor? Comparemos os “surfistas de sofá” e os clientes do
Airbnb: para os primeiros, o essencial reside no relacionamento com as
pessoas, sendo o conforto secundário; para os segundos, é o inverso. Os
critérios de avaliação são, portanto, sensivelmente diferentes: a
atração do Airbnb, além do preço, está na limpeza do local e sua
proximidade com o centro turístico, enquanto que no Couchsurfing.org,
além da gratuidade, há a convivência com o anfitrião. Da mesma forma,
plataformas tais como Taskrabbit.com oferecem troca de serviços entre
particulares que pagam, enquanto que os SEL baseiam-se na doação.
Em textos  destinados ao grande público,
os promotores do consumo colaborativo citam frequentemente iniciativas
associativas para vangloriar-se do aspecto “social” e “ecológico” dessa
“revolução”. Essas menções desaparecem quando falam na imprensa de
negócios. Na verdade, só podemos juntar essas duas abordagens sob o
mesmo rótulo, de “economia do compartilhamento”, se levarmos em conta a
forma dessas relações e minimizarmos as lógicas, muito diferentes, que
as alimentam.
Essa combinação, que culmina no passe de mágica  que consiste em traduzir compartilhar por alugar, é largamente encorajada por aqueles que procuram tirar vantagem do fenômeno. Por meio de um subterfúgio semelhante ao greenwashing (“lavagem
verde de imagem”), projetos tipo AMAP são utilizados como garantia.
Quem não leva em conta os valores sociais subjacentes a esses projetos
participa, assim, de uma espécie de “lavagem colaborativa” (collaborative washing).
As pessoas que oferecem seu teto, sua mesa ou seu tempo a desconhecidos
geralmente se caracterizam, na verdade, pela busca de práticas
igualitárias e ecológicas – o que as aproxima ainda mais de cooperativas
de consumo e produção e de plataformas de troca C2C.
Essa dualidade coincide com muitas
outras: a que separa o “desenvolvimento sustentável” da ecologia
política, ou ainda o movimento do software de código aberto – que
promove a colaboração de todos para melhorar o software – e o de
software livre – que promove a liberdade dos usuários a partir de uma
perspectiva política. A distinção feita por Richard Stallman, um dos
pais do software livre, poderia ser estendida a cada um desses domínios:
“O primeiro é uma metodologia de desenvolvimento; o segundo, um
movimento social (11)”.
*Animadores do coletivo La Rotative, www.larotative.org
Notas
(1Cf. Rachel Botsman et Roo Rogers, What’s Mine Is Yours: How Collaborative Consumption Is Changing the Way We Live, HarperCollins, Londres, 2011; Lisa Gansky, The Mesh: Why the Future of Business Is Sharing, Portfolio Penguin, New York, 2010. Na França, www.ouishare.net/fr; www.consocollaborative.com, por exemplo.
(2) Jeremy Rifkin, L’Age de l’accès. La nouvelle culture du capitalisme, La Découverte, coll. «Poche-Essais», Paris, 2005 (1re éd.: 2000).
(3) Citado em Anne-Sophie Novel e Stéphane Riot, Vive la corévolution! Pour une société collaborative, Alternatives, coll. «Manifestô», Paris, 2012.
(4) Esquema fraudulento, lançado em 1920
por Charles Ponzi, de remunerar os investidores através de solicitação
constante de novos colaboradores. Ler Ibrahim Warde, «Ponzi, ou le secret des pyramides», Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(6) Ler Mona Chollet, «Yoga du rire et colliers de nouilles», Le Monde diplomatique, agosto 2009.
(7) Zopa, Prosper e Lending Club são as
principais plataformas, nos Estados Unidos. Na França, uma outra
associação para empréstimo, a FriendsClear, tem parceria com o Crédit
Agricole.
(8) «“On a raté l’objectif. Autolib’ ne supprime pas de voitures”», L’interconnexion n’est plus assurée, 26 mars 2013, http://transports.blog. lemonde.fr
(9) Couchsurfing.org, Hospitalityclub.org e Bewelcome.org, especialmente. Este último reúne os desapontamentos dos dois primeiros
(10) Ler Cédric Gossart, «Quand les technologies vertes poussent à la consommation», Le Monde diplomatique, julho 2010.

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