Por Lenir Santos*


Há anos, em todos os eventos ou reuniões da área da saúde, a questão
do limite de gasto com pessoal definido pela lei de responsabilidade
fiscal (LRF) se faz presente. As despesas com pessoal na área da saúde
consomem por volta de 80% do montante dos seus recursos, impactando o
limite de gasto previsto no art. 18 da LRF.


Esse comprometimento leva os municípios a buscar saídas para cumprir
com o seu dever de cuidar da saúde da população, buscando novas formas
de vínculo com profissionais da saúde. As saídas mais comuns são a
criação de organizações sociais; celebração de termos de parceria com
OSCIP; contratação de profissional de saúde como autônomo ou como pessoa
jurídica, dentre outras.


Soluções que podem parecer “uma luz”, como os consórcio públicos,
acabam por se revelarem como “falsa solução” quando se pretende não
computar os gastos com pessoal da pessoa jurídica consorcial. A Portaria
72, de 2012, do Tesouro Nacional, tem sido desalentadora para os
municípios que pretendem não computar os gastos com pessoal para os
limites da LRF. A Portaria exige que seja incluído no gasto de pessoal
de cada município consorciado o valor que lhe corresponda.


Tenho defendido como uma forma de resolução do impasse – uma vez que
não há o menor indício de mudança na LRF – o desenvolvimento de tese
jurídica de que os recursos federais transferidos para os municípios não
sejam computados como receitas correntes líquidas municipais para
efeito do limite de gasto do art. 18 da LRF, ou seja, limite de gasto
com pessoal.


Quais os argumentos jurídicos para essa defesa?


1. Os recursos federais da saúde, quando repassados aos demais entes
federativos levam a sua marca de “recursos federais”, os quais não podem
ser gastos de acordo com os regramentos municipais, mas sim com os
federais, como a observância do disposto na LDO federal e demais
legislações;


2. Os recursos federais da saúde são sempre aplicados no estrito
limite dos programas federais(1) aos quais estão vinculados, e não de
acordo com o poder discricionário do administrador municipal, respeitado
sua natureza sanitária;


3. Os programas federais da saúde mitigam a autonomia federativa do
município. Muitas vezes, eles, os programas, dispõem até mesmo sobre o
valor do salário do profissional de saúde a ser contratado, como é o
caso do médico da saúde da família, não garantindo autonomia ao ente
federativo que é auditado pelo DENASUS, o qual impõe sanções
administrativas como a devolução de recursos, a alegação de improbidade
administrativa e outras penalidades quando o gasto desborda dos limites
da portaria ministerial;


4. Os recursos federais, por continuarem sendo recursos federais –
conforme decisão jurisprudencial firmada pelo STF, – são auditados no
município pelos órgãos federais de controle interno, como a CGU, tal
qual um convênio, ainda que as transferências dos recursos da saúde não
possam ser consideradas conveniais, conforme determinação
constitucional. Contudo, seu tratamento é sempre conforme o do convênio
para efeito do controle.


5. O papel de determinados municípios como de referência sanitária
para outros entes federativos é outro ponto de grande importância. Essa
determinação – que é constitucional – tem grave relevância tendo em
vista a hierarquização dos serviços em acordo com a sua complexidade
tecnológica e a característica do SUS ter organização sistêmica na
região de saúde. Isso impõe a determinados municípios o atendimento de
população estranha ao seu território municipal por força da rede
hierarquizada de ações e serviços de saúde. O ente federativo, tido como
referência na rede, não pode arcar com o encargo de contratar pessoal
para atendimento de cidadãos que não compõem sua população municipal;


6. O precedente legal de não computar os gastos com pessoal dos
antigos territórios federais (Amapá e Roraima), bem como o custeio de
determinadas áreas do DF com recursos federais; e


7. Decisão do Tribunal de Contas de Minas Gerais, no tocante ao
controle de contas dos recursos das transferências federais, nas
Consultas 656574 e 700774, de 2006.


Os recursos federais do SUS, por não conferirem ao município o mesmo
grau de autonomia dos recursos das partilhas federativas (FPM), nem
deveriam ser computados como receita sujeita ao controle externo
específico do ente municipal(2) , por ser controlado diretamente pelo
controle interno federal e indiretamente pelo seu controle externo;
tampouco deveriam se sujeitar ao limite de gasto da LRF.


Por fim, o que se defende é que as despesas com pessoal havida com os
recursos federais não deveriam ser computadas para o efeito do disposto
no art. 18 da LRF, tampouco a despesa com pessoal que atende munícipes
referenciados de outros municípios. Essas despesas deveriam ser
excluídas dessa somatória.


Grave é a situação do município-referência sanitária – que atende
cidadão de outro ente federativo onerando sua folha de pagamento – por
se ver obrigado a contabilizar essa mão de obra por executar serviços de
maneira solidária na sua região de saúde. Por fim, como esses recursos
interfederativos – em sua quase totalidade – tem sua forma de aplicação
definida pelo nível central – Ministério da Saúde –, o ônus do limite de
gasto com pessoal não deveria ser imputado ao município.


Contabilizar o recurso federal da saúde, em execução no município,
como receita municipal quanto ao limite de gasto com pessoal, uma vez
que as demais liberdades administrativas e financeiras no âmbito de sua
autonomia federativa não lhe são conferidas, é medida anti-isonômica.


Ou se adota o conceito de que os recursos das transferências federais
devem ter a mesma genética das partilhas constitucionais (FPM e FPE) ou
não se pode computar os gastos com pessoal decorrentes dos recursos
federais, bem como o gasto com recursos humanos que se destinam a
cumprir o papel de referência sanitária do ente municipal. Isso seria de
equidade federativa. Não se pode imputar aos municípios ônus além
daqueles que ele pode suportar. O princípio administrativo da
razoabilidade vem sendo ferido todo o tempo, impedindo uma boa
governança na saúde e a realização da equidade federativa.





*Lenir Santos é  doutora em saúde pública pela Unicamp;
especialista em direito sanitário pela USP; coordenadora do curso de
especialização em direito sanitário do IDISA; e advogada.


Notas

(1) Os recursos da saúde são transferidos aos entes federativos
mediante adesão ou incentivo à execução de programas definidos pelo
Ministério da Saúde. Esses recursos devem ser usados no estrito limite
do disposto em portaria ministerial a qual pauta a autonomia do ente
federativo quanto ao seu gasto.


(2) A minha defesa sempre foi no sentido contrário; sempre defendi
que os recursos da saúde, transferidos aos municípios, tivessem o mesmo
tratamento dos recursos do FPM: liberdade de gasto no estrito limite do
plano de saúde; controle interno e externo próprio etc. Mas diante do
entendimento de que os recursos da saúde federais devem ser pautados
pelo controle federal (interno e externo) e tratados como se fora
convenial, venho defendendo a tese da coerência de tratamento, não
devendo incidir sobre eles controles próprios de suas receitas correntes
líquidas. Há que se ter tratamento isonômico: ou o recurso repassado
integra os recursos do município para todos os efeitos ou, caso
contrário, eles devem ter tratamento convenial em todos os sentidos, não
devendo ser computados para o limite da LRF.