A manipulação de contextos na montagem de notícias
Se há um veículo de comunicação na
imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu
estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal de Rede Globo de Televisão.
Há muito tempo que o JN reduziu a prioridade pela notícia para
enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da
empresa , bem como o proselitismo aberto em favor das causas
político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo.
No terreno comercial a emissora dedica cada vez mais espaço em seus
noticiários para promover novelas, shows musicais, eventos esportivos e
iniciativas de seu interesse direto. O espaço para informações sobre
problemas comunitários e formas de resolvê-los está sendo substituído
por preocupações comerciais da empresa, travestidas de notícia
jornalística.
A emissora é suficientemente hábil e inteligente para perceber que é
necessário dar atenção aos problemas sociais das comunidades para não
perder mais audiência. A questão é que ela trata temas como saúde,
moradia, corrupção, segurança e desemprego sob o viés político em vez de
buscar o engajamento de seus repórteres e editores com a prática co
chamado jornalismo de soluções, onde os profissionais participam da
busca de alternativas em vez de se limitarem à pratica das reportagens
declaratórias, estilo “ele disse, ela disse”.
Mas é no terreno político que o contexto torna-se mais importante na
análise do noticiário “Global”. Um jurista interessado em abrir um
processo judicial contra a Globo terá muita dificuldade para
enquadrar a emissora nas leis vigentes porque a maior rede de televisão
do país tem a necessária expertise para contornar os dispositivos
legais.
O que a Globo sabe fazer magistralmente é manipular
contextos, como por exemplo, a alocação de tempos para acusação e
defesa. Uma denúncia feita por algum delator no processo Lava Jato
recebe um detalhamento que toma vários minutos enquanto a defesa merece
rápidas e burocráticas menções do tipo “todas as doações foram
registradas de acordo com a lei eleitoral”, “não comentamos inquéritos
em andamento”, ou “ainda não tivemos acesso aos autos do processo”, sem
falar no lacônico “não conseguimos contato com,,,,”.
Discutir a legalidade de tal processo é chover no molhado porque a
emissora sempre vai alegar que seguiu o preceito jornalístico da
consulta à parte atacada ou agredida. A questão é a diferença de tempo e
detalhamento. Na maioria dos casos de divulgação de denúncias por
delação premiada não houve da parte dos telejornais da TV Globo
a preocupação em apresentar de forma detalhada os argumentos da outra
parte. Assim, o telespectador acabou sempre ficando sob o efeito do
impacto da denúncia, mesmo aqueles que não acreditaram nela.
Na atual batalha da informação a propósito da continuidade ou não de
Dilma Rousseff na Presidência da República, os fatos e dados perderam
importância em favor da forma como cada parte os inseriu num contexto
que lhe é favorável. A cultura tradicional do jornalismo enfatiza a
veracidade e exatidão de fatos e dados, mas ainda não desenvolveu o
mesmo grau de especificidade e detalhamento em relação aos procedimentos
editoriais sobre como contextualizar corretamente uma noticia. Um dado
não existe fora de um contexto. Ele pode ser exato mas manipulado
conforme a imagem do copo meio cheio ou meio vazio.
Um editor ou jornalista pode criar um contexto sem alterar dados,
fatos ou eventos. O copo é o mesmo, o volume de água idem, mas o
profissional pode descrever o fato de maneiras diferentes o que vai
induzir o leitor, telespectador ou internauta a desenvolver percepções e
opiniões condicionadas pela descrição jornalística.
Outro exemplo da manipulação de contextos foi dado pela TV Globo
no caso da hostilização de funcionários da empresa por desafetos
políticos na atual conjuntura política no país. A emissora enquadrou os
eventos como agressões à liberdade de imprensa quando na realidade eles
são uma consequência da polarização político-ideológica na qual a Globo
é parte. Atirar ovos e tomates, ou xingar funcionários tem tudo a ver
com irritação e divergências políticas, e nada a ver com violações do
direito de expressar opiniões.
Os manuais de redação descrevem com exatidão os procedimentos para
coleta, edição e preparação de fatos, dados e eventos de interesse
jornalístico mas não abordam com o mesmo detalhamento à
contextualização, um processo que normalmente acontece na fase da edição
onde ocorre a montagem das várias peças componentes de uma noticia.
As redações não são um ambiente democrático onde se discutem posições
e atitudes. Prevalece no dia a dia o ritmo industrial de produção.
Assim, a cultura política acaba sendo fortemente influenciada por quem
comanda a operação jornalística. Os editores organizam a pauta que é
passada aos repórteres que vão a campo já com um roteiro preestabelecido
e com tempo marcado para regressar. Ao chegar no local da matéria, o
repórter não tem tempo de buscar visões diversificadas. Ele se limita a
ouvir o protagonista e a parte contrária, sem poder levar em conta que a
esmagadora maioria dos fatos, dados e eventos não se resumem a apenas
dois lados. Além disso o profissional não tem tempo e, muitas vezes nem
preparo teórico, para avaliar se um dado, fato ou evento está
corretamente contextualizado.
Como a TV pode distorcer uma notícia
A plataforma televisão é especialmente suscetível a induzir no
telespectador percepções descontextualizadas porque o tempo de
transmissão de uma notícia é muito curto e porque as imagens geralmente
são apresentadas por um único ângulo (copo meio cheio ou meio vazio)
simplificando a visão da realidade. A manipulação da imagem como notícia
num telejornal provoca no telespectador reações mais emocionais do que
as geradas pela leitura de um jornal ou revista, onde a postura é mais
analítica, pela própria natureza do veículo ou plataforma de
comunicação.
Num mundo marcado pela avalanche diária de informações, onde a
complexidade dos fatos, dados e eventos se torna cada vez mais evidente,
é muito difícil tomar decisões num curto espaço de tempo, entre sair da
redação e voltar com o material recolhido. Tudo isto induz a que o
produto final, a informação publicada, seja enviesada por conta da
cultura política predominante na redação ou então repassada de forma
bruta para o leitor, como é o caso dos indicadores econômicos. O
repórter não teve tempo ou não quis questionar o entrevistado e repassa
direto para o público uma informação que já veio condicionada pelos
interesses e objetivos da fonte.
Esta breve descrição do processo de distorção informativa provocado
pela manipulação de contextos permite perceber como é importante tentar
identificar o DNA de uma notícia. De mesma forma que você só compra um
produto no supermercado depois de checar o prazo de validade e a
informação nutricional, uma notícia não pode ser consumida sem uma
checagem mínima da sua exatidão, veracidade e contexto. Esta é uma
tarefa que o leitor, telespectador, ouvinte ou internauta terá que fazer
sozinho porque a maioria dos veículos não disponibiliza este tipo de
dado.
É muito improvável uma mudança na política editorial do Jornal Nacional porque são rotinas e valores entranhados há décadas no telejornal que serve de guia para todos os demais noticiários da TV Globo.
Por paradoxal que pareça, é mais possível o surgimento de uma nova
atitude entre os telespectadores na medida em que eles descobrirem como
funciona o enviesamento da informação transmitida por meio da
manipulação dos contextos onde está inserida a notícia.
***
Carlos Castilho é jornalista e editor do Observatório da Imprensa
imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu
estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal de Rede Globo de Televisão.
Há muito tempo que o JN reduziu a prioridade pela notícia para
enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da
empresa , bem como o proselitismo aberto em favor das causas
político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo.
No terreno comercial a emissora dedica cada vez mais espaço em seus
noticiários para promover novelas, shows musicais, eventos esportivos e
iniciativas de seu interesse direto. O espaço para informações sobre
problemas comunitários e formas de resolvê-los está sendo substituído
por preocupações comerciais da empresa, travestidas de notícia
jornalística.
A emissora é suficientemente hábil e inteligente para perceber que é
necessário dar atenção aos problemas sociais das comunidades para não
perder mais audiência. A questão é que ela trata temas como saúde,
moradia, corrupção, segurança e desemprego sob o viés político em vez de
buscar o engajamento de seus repórteres e editores com a prática co
chamado jornalismo de soluções, onde os profissionais participam da
busca de alternativas em vez de se limitarem à pratica das reportagens
declaratórias, estilo “ele disse, ela disse”.
Mas é no terreno político que o contexto torna-se mais importante na
análise do noticiário “Global”. Um jurista interessado em abrir um
processo judicial contra a Globo terá muita dificuldade para
enquadrar a emissora nas leis vigentes porque a maior rede de televisão
do país tem a necessária expertise para contornar os dispositivos
legais.
O que a Globo sabe fazer magistralmente é manipular
contextos, como por exemplo, a alocação de tempos para acusação e
defesa. Uma denúncia feita por algum delator no processo Lava Jato
recebe um detalhamento que toma vários minutos enquanto a defesa merece
rápidas e burocráticas menções do tipo “todas as doações foram
registradas de acordo com a lei eleitoral”, “não comentamos inquéritos
em andamento”, ou “ainda não tivemos acesso aos autos do processo”, sem
falar no lacônico “não conseguimos contato com,,,,”.
Discutir a legalidade de tal processo é chover no molhado porque a
emissora sempre vai alegar que seguiu o preceito jornalístico da
consulta à parte atacada ou agredida. A questão é a diferença de tempo e
detalhamento. Na maioria dos casos de divulgação de denúncias por
delação premiada não houve da parte dos telejornais da TV Globo
a preocupação em apresentar de forma detalhada os argumentos da outra
parte. Assim, o telespectador acabou sempre ficando sob o efeito do
impacto da denúncia, mesmo aqueles que não acreditaram nela.
Na atual batalha da informação a propósito da continuidade ou não de
Dilma Rousseff na Presidência da República, os fatos e dados perderam
importância em favor da forma como cada parte os inseriu num contexto
que lhe é favorável. A cultura tradicional do jornalismo enfatiza a
veracidade e exatidão de fatos e dados, mas ainda não desenvolveu o
mesmo grau de especificidade e detalhamento em relação aos procedimentos
editoriais sobre como contextualizar corretamente uma noticia. Um dado
não existe fora de um contexto. Ele pode ser exato mas manipulado
conforme a imagem do copo meio cheio ou meio vazio.
Um editor ou jornalista pode criar um contexto sem alterar dados,
fatos ou eventos. O copo é o mesmo, o volume de água idem, mas o
profissional pode descrever o fato de maneiras diferentes o que vai
induzir o leitor, telespectador ou internauta a desenvolver percepções e
opiniões condicionadas pela descrição jornalística.
Outro exemplo da manipulação de contextos foi dado pela TV Globo
no caso da hostilização de funcionários da empresa por desafetos
políticos na atual conjuntura política no país. A emissora enquadrou os
eventos como agressões à liberdade de imprensa quando na realidade eles
são uma consequência da polarização político-ideológica na qual a Globo
é parte. Atirar ovos e tomates, ou xingar funcionários tem tudo a ver
com irritação e divergências políticas, e nada a ver com violações do
direito de expressar opiniões.
Os manuais de redação descrevem com exatidão os procedimentos para
coleta, edição e preparação de fatos, dados e eventos de interesse
jornalístico mas não abordam com o mesmo detalhamento à
contextualização, um processo que normalmente acontece na fase da edição
onde ocorre a montagem das várias peças componentes de uma noticia.
As redações não são um ambiente democrático onde se discutem posições
e atitudes. Prevalece no dia a dia o ritmo industrial de produção.
Assim, a cultura política acaba sendo fortemente influenciada por quem
comanda a operação jornalística. Os editores organizam a pauta que é
passada aos repórteres que vão a campo já com um roteiro preestabelecido
e com tempo marcado para regressar. Ao chegar no local da matéria, o
repórter não tem tempo de buscar visões diversificadas. Ele se limita a
ouvir o protagonista e a parte contrária, sem poder levar em conta que a
esmagadora maioria dos fatos, dados e eventos não se resumem a apenas
dois lados. Além disso o profissional não tem tempo e, muitas vezes nem
preparo teórico, para avaliar se um dado, fato ou evento está
corretamente contextualizado.
Como a TV pode distorcer uma notícia
A plataforma televisão é especialmente suscetível a induzir no
telespectador percepções descontextualizadas porque o tempo de
transmissão de uma notícia é muito curto e porque as imagens geralmente
são apresentadas por um único ângulo (copo meio cheio ou meio vazio)
simplificando a visão da realidade. A manipulação da imagem como notícia
num telejornal provoca no telespectador reações mais emocionais do que
as geradas pela leitura de um jornal ou revista, onde a postura é mais
analítica, pela própria natureza do veículo ou plataforma de
comunicação.
Num mundo marcado pela avalanche diária de informações, onde a
complexidade dos fatos, dados e eventos se torna cada vez mais evidente,
é muito difícil tomar decisões num curto espaço de tempo, entre sair da
redação e voltar com o material recolhido. Tudo isto induz a que o
produto final, a informação publicada, seja enviesada por conta da
cultura política predominante na redação ou então repassada de forma
bruta para o leitor, como é o caso dos indicadores econômicos. O
repórter não teve tempo ou não quis questionar o entrevistado e repassa
direto para o público uma informação que já veio condicionada pelos
interesses e objetivos da fonte.
Esta breve descrição do processo de distorção informativa provocado
pela manipulação de contextos permite perceber como é importante tentar
identificar o DNA de uma notícia. De mesma forma que você só compra um
produto no supermercado depois de checar o prazo de validade e a
informação nutricional, uma notícia não pode ser consumida sem uma
checagem mínima da sua exatidão, veracidade e contexto. Esta é uma
tarefa que o leitor, telespectador, ouvinte ou internauta terá que fazer
sozinho porque a maioria dos veículos não disponibiliza este tipo de
dado.
É muito improvável uma mudança na política editorial do Jornal Nacional porque são rotinas e valores entranhados há décadas no telejornal que serve de guia para todos os demais noticiários da TV Globo.
Por paradoxal que pareça, é mais possível o surgimento de uma nova
atitude entre os telespectadores na medida em que eles descobrirem como
funciona o enviesamento da informação transmitida por meio da
manipulação dos contextos onde está inserida a notícia.
***
Carlos Castilho é jornalista e editor do Observatório da Imprensa
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