— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Filha de coronel do Exército, a adolescente Sônia Moraes foi levada pelo
pai e a mãe à versão carioca da marcha da família com deus pela
liberdade. Era 1964 e os Moraes festejavam a queda do governo
constitucional. O tempo passou, o regime mostrou seus dentes e Sônia
desapareceu. Engajara-se na luta armada contra a ditadura. Presa, teve
os seios arrancados e foi chacinada até a morte. Desesperado, o pai
procuraria durante anos pela filha. Um dia recebeu um presente sem
sentido, enviado pelo seu desafeto, o general Adyr Fiúza de Castro,
comandante do DOI-Codi, no Rio. Era um cassetete da Polícia do Exército.
Descobriria depois que aquilo representava uma advertência e um
escárnio. Com aquele cassetete sua filha, Sônia Maria de Moraes Angel
Jones, fora estuprada antes de morrer em suplicio.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Dita no calor da hora, a frase dura de um possesso Ciro Gomes carregaum desaforo dos mais evidentes, tradicionais e utilizados para aquele
momento em que a temperatura sobe e a cusparada retórica se projeta com
sua missão de destratar. Era madrugada do dia 17 e um grupelho de
jovens ululantes e disfuncionais fazia barulho diante da casa do
ex-governador e ex-ministro de Itamar e Lula.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Mas, no caso, o mais importante não é o insulto saído da boca de um
político notório pelo temperamento explosivo. Junto, traz um ensinamento
sábio. Com sua validade confirmada pela história recente.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
A última vez que tal conselho deixou de ser ouvido custou 21 anos de ditadura ao Brasil.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Em 1964, no momento em que articulava o golpe contra Jango, o
arquiconspirador Carlos Lacerda desconsiderou a possibilidade de
reversão do que urdia. Embora sagaz, não imaginou que a usurpação de um
presidente eleito, que parecia abrir-lhe o caminho para a presidência,
viesse a ser, como foi, o começo do fim de suas próprias ambições
presidenciais. Aos 50 anos, vivia o auge de sua carreira. Foi preso e
cassado pelos novos inquilinos do poder que ajudou a implantar. Morreria
em 1977 sem recuperar seus direitos políticos. Provavelmente lamentaria
não ter sido admoestado — antes da vitória que se transformaria em
derrocada — por um adversário mais atrevido que lhe dissesse nas fuças:
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Outro conspirador, Adhemar de Barros, também não ouviu a voz da
razão. Ele e a mulher, Leonor, puxaram a edição paulista da Marcha da
Família com Deus pela Liberdade. Também sonhava com o Planalto ao qual
já fora duas vezes candidato. Seu problema era semelhante aos dos demais
conjurados: falta de voto. Quando veio o golpe que pediu, Adhemar avisou: “Agora,
caçaremos os comunistas por todos os lados do país”. Dono de cadeia de
rádios e jornais que hoje compõem a Rede Bandeirantes, Adhemar levou uma
rasteira do destino: foi caçado e cassado. A exemplo de Lacerda, morreu
sem recuperar os direitos políticos.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
O mesmo aconteceu com parcela dos jornais embarcados na conspirata,
caso do Correio da Manhã, o mais destemperado dos inimigos de Jango, que
feneceu destroçado pela censura e a perseguição dos militares. Claro
que isso não se aplica às Organizações Globo, que somente se
viabilizaram como um dos maiores impérios de comunicação do mundo
através de suas relações carnais com um governo de assassinos. Sem
vacilar diante da mentira, quando o poder constitucional foi derrubado, O
Globo proclamou na sua manchete de capa em 2 de abril de 1964:
“Ressurge a democracia”. Para o Globo, a democracia golpeada era a
ditadura, enquanto a ditadura que chegava era a democracia.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Quando o golpe deu seus primeiros vagidos, a Ordem dos Advogados do
Brasil, através de seu conselho federal, correu a embalar aquele
sinistro berço de renda negra. Enalteceu “os homens responsáveis desta
terra” que baniram “o mal das conjuras comuno-sindicalistas”. E,
paradoxalmente, o estupro se dera “sob a égide intocável do Estado do
Direito”. Sob a mesma égide e de tal estado, em 27 de agosto de 1980,
uma carta-bomba na sede da Ordem matou a secretária Lyda Monteiro da
Silva, de 59 anos. A carta era dirigida ao presidente do conselho
federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes. Ocorre que, após apoiar a
implosão da Constituição, a OAB percebera seu erro. E mudara.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
O Supremo, para vergonha dos pósteros, agiu igual. Sob o pitoresco
olhar do STF, tudo estava em seu lugar: o golpe era legítimo, a
democracia estava preservada e a constituição idem. Seu presidente,
Álvaro Moutinho da Costa, saudou o general Castello Branco em visita à
corte. Porém, após o AI-5, três ministros, os mais independentes, foram
aposentados compulsoriamente.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Filha de coronel do Exército, a adolescente Sônia Moraes foi levada
pelo pai e a mãe à versão carioca da marcha da família com deus pela
liberdade. Era 1964 e os Moraes festejavam a queda do governo
constitucional. O tempo passou, o regime mostrou seus dentes e Sônia
desapareceu. Engajara-se na luta armada contra a ditadura. Presa, teve
os seios arrancados e foi chacinada até a morte. Desesperado, o pai
procuraria durante anos pela filha. Um dia recebeu um presente sem
sentido, enviado pelo seu desafeto, o general Adyr Fiúza de Castro,
comandante do DOI-Codi, no Rio. Era um cassetete da Polícia do Exército.
Descobriria depois que aquilo representava uma advertência e um
escárnio. Com aquele cassetete sua filha, Sônia Maria de Moraes Angel
Jones, fora estuprada antes de morrer em suplicio.
— Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Talvez da explosão de Ciro fique mais o destempero do que o aviso.
Mas é este que conta e tudo resume. Não é o mandato de Dilma que está em
jogo. Quando a comandante suprema das forças armadas é grampeada, o
recado é sucinto: ninguém está livre, hoje foi ela, amanhã serão
vocês. Por isso, a violência ilegal, absurda e flagrante que se abate
sobre a atual e o ex-presidente é apenas uma fachada. Atrás dela vem o
estado de exceção. Quando diz ao aprendiz de fascista “Eu estou
protegendo você, seu filho da puta!”, Ciro expressa o que acontece após a
ruptura do Estado Democrático de Direito quando até o guarda da esquina
sente-se investido de superpoderes.
Como imensos contingentes da militância golpista limitam seu
vocabulário a meia dúzia de chavões e não sabem bem o que estão fazendo
ali e a História mostra que o que está acontecendo é somente um
revival dos tempos de 1954 e de 1964, e tem muito a lhes ensinar,
talvez a melhor resposta ao rancor não seja a de Ciro mas a do ministro
Jaques Wagner. Aborrecido num restaurante com o glossário golpista de um
cidadão que o importunava, reagiu de maneira sintética: “Vá estudar!”
Estudo é uma arma de exterminar fascistas. E ainda poderemos dizer a
quem seguir a sugestão: “Estamos protegendo você”.
.oOo.
Ayrton Centeno é jornalista.
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