(This is a Portuguese translation of an article published earlier today. For the English version, click here.)
AS MÚLTIPLAS E IMPRESSIONANTES crises que assombram o Brasil agora atraem substancialmente a atenção da mídia internacional.
O que é compreensível, já que o Brasil é o quinto mais populoso do
mundo e a oitava economia do mundo. Sua segunda maior cidade, o Rio de
Janeiro, é a sede das Olimpíadas deste ano. Porém, boa parte dessa cobertura internacional
é repetidora do discurso que vem das fontes midiáticas
homogeneizadas, anti-democráticas e mantidas por oligarquias no Brasil
e, como tal, essa informação é enviesada, pouco precisa e incompleta,
especialmente quando vem daqueles profissionais com pouca familiaridade
com o país (mas há vários repórteres internacionais que trabalham no Brasil fazendo um ótimo trabalho).
Seria difícil exagerar quando se afirma a gravidade da situação no Brasil em várias esferas. O trecho a seguir, publicado ontem por Simon Romero, o correspondente do The New York Times no Brasil, evidencia o nível de calamidade da situação:
fora de controle, gerando instabilidade e libertando forças sombrias,
com um resultado positivo quase impossível de se imaginar. A antes
remota possibilidade do impeachment da presidenta Dilma Rousseff parece,
agora, provável.
Porém, uma diferença significante em relação aos EUA é que a agitação
no Brasil não se limita a apenas um político. O contrário é verdade,
conforme Romero comenta: “quase todas as frentes do sistema político sob
uma nuvem de escândalo”. O que inclui não apenas o PT, partido
trabalhista de centro-esquerda da presidenta – atravessado por casos
sérios de corrupção – mas também a grande maioria dos grupos políticos e
econômicos de centro e de direita que agem para destruir o PT, que
estão afundando em uma quantidade ao menos igual de criminalidade. Em
outras palavras, o PT é, sim, profundamente corrupto e banhado em
escândalos, mas, virtualmente, assim também são todos os grupos
políticos trabalhando para minar o partido e obter o poder que foi
democraticamente entregue a ele.
Quando a mídia internacional fala sobre o Brasil, ela tem focado nos
crescentes protestos de rua que pedem o impeachment de Rousseff. Essas
fontes midiáticas tipicamente mostram os protestos de forma idealizada,
com uma certa adoração: como movimentos de massa inspiradores que se
levantam contra um regime corrupto. Ontem, Chuck Todd, da NBC News,
retuitou Ian Bremmer (do Eurasia Group) descrevendo
os protestos anti-Dilma Rousseff como “O Povo contra A Presidente” – um
tema fabricado, condizente com o que é noticiado por grupos mídiáticos
brasileiros anti-governo, como a Globo:
Essa narrativa é, no mínimo, uma simplificação radical do que está
acontecendo e, mais provavelmente, uma propaganda feita para minar um
partido de esquerda há muito mal visto pelas elites políticas
dos EUA. A caracterização dos protestos ignora o contexto histórico da
política no Brasil e, mais importante, uma série de questões críticas:
quem está por trás dos protestos, quão representativos eles são em
relação à população brasileira e quais são seus verdadeiros interesses?
A ATUAL VERSÃO de democracia no
Brasil é bastante jovem. Em 1964, o governo de esquerda democraticamente
eleito foi derrubado por um golpe militar. Oficiais norteamericanos
negaram envolvimento tanto publicamente quanto perante o Congresso, mas –
nem precisaria ser dito – documentos e registros posteriormente revelados provaram que os EUA apoiaram diretamente o golpe e ajudaram em seu planejamento.
Os 21 anos de ditadura militar de direita pró-EUA que se seguiram
foram brutais e tirânicos, especializando-se em técnicas de tortura
usadas contra dissidentes políticos que eram ensinadas pelos EUA e pelo
Reino Unido. Um relatório compreensível da Comissão da Verdade, em 2014,
informou
que ambos os países “treinaram interrogadores brasileiros em técnicas
de tortura”. Dentre as vítimas, estava Rousseff, então guerrilheira da
esquerda democrata, presa e torturada pelo regime militar nos anos 70.
O golpe em si e a ditadura que se seguiu foram apoiados pelas oligarquias regionais e por suas grandes redes midiáticas,
lideradas pela Globo, a qual – de forma notável – apresentou o golpe de
1964 como uma nobre derrota de um governo esquerdista corrupto (soa
familiar?). Tanto o golpe quanto o regime ditatorial foram apoiados
também pela extravagante (e absurdamente branca) elite econômica do
país, além de sua pequena classe média. Como opositores da democracia
geralmente fazem, as classes altas viam a ditadura como uma proteção
contra as massas de população pobre, composta majoritariamente por
pessoas negras e pardas. Conforme o jornal The Guardian publicou
sobre informações da Comissão da Verdade: “Assim como em toda a América
Latina dos anos 60 e 70, a elite e a classe média se alinharam como o
regime militar para afastar o que elas viam como uma ameaça comunista”.
Essas divisões severas de classe e raça no Brasil continuam como dinâmica dominante. Segundo a BBC, em 2014, baseada em vários estudos:
“o Brasil apresenta uma das maiores níveis de desigualdade de renda do
mundo”. O editor-chefe do Americas Quarterly, Brian Winter, em
reportagem sobre os protestos, escreveu nessa semana:
“O abismo entre os ricos e pobres continua sendo o fato central da vida
no Brasil – e nesses protestos, isso não é diferente”. Se você quiser
entender qualquer coisa sobre a atual crise política no Brasil, é
crucial entender também o que Winter quer dizer com essa afirmação.
O PARTIDO DE DILMA, PT, foi
formado em 1980 como um partido socialista de esquerda clássica. A fim
de melhorar seu apelo nacional, o partido moderou seus dogmas
socialistas e se tornou, gradualmente, mais próximo dos chamados
social-democratas da Europa. Agora, existem partidos populares à sua esquerda; de fato, Dilma, por vontade própria ou não, defendeu medidas de austeridade para resolver problemas econômicos e passar confiança aos mercados estrangeiros, e justamente nessa semana assinou uma draconiana lei “anti-terrorismo”.
Ainda assim, o PT se mantém na centro-esquerda do espectro político
brasileiro, e seus apoiadores são, surpreendentemente, as minorias
raciais e classes pobres. Enquanto no poder, o partido promoveu reformas sociais e econômicas que levaram benefícios governamentais e oportunidades para tirar milhões de brasileiros da pobreza.
O Partido dos Trabalhadores está na presidência há 14 anos: desde
2002. Sua popularidade foi um subproduto do antecessor carismático de
Dilma, Luis Inácio Lula da Silva (universalmente referido como “Lula”). A
ascensão de Lula à presidência foi um símbolo poderoso da luta da
classe pobre no Brasil durante a democracia: um trabalhador e líder
sindical, de uma família pobre, que deixou a escola na segunda série e
não sabia ler até os 10 anos, preso pela ditadura por atividade na luta
sindical. O ex-presidente foi motivo de riso para elites brasileiras por
meio de um tom classista no discurso sobre seu jargão trabalhista e sua
forma de falar.
Depois
de tres tentativas infrutíferas de chegar à presidência, Lula provou
ser uma força política imbatível. Eleito em 2002 e reeleito em 2006, ele
deixou o cargo com taxas de aprovação tão altas
que foi capaz de garantir a eleição de Dilma, sua sucessora, antes
desconhecida pela população, e que foi reeleita em 2014. Há muito tempo
se cogita que Lula – um político que se opõe publicamente
a medidas de austeridade – pretende concorrer novamente para a
presidência em 2018 depois de completo o segundo mandato de Dilma, e
forças anti-PT se sentem petrificadas com a ideia de que Lula vença
novamente.
Embora a classe oligárquica da nação tenha usado o PSDB, partido de
centro-direita, de forma bem sucedida como um contrapeso, o partido foi
impotente para derrotar o PT em quatro eleições presidenciais
consecutivas. O voto é obrigatório, e os cidadãos de baixa renda
garantiram as vitórias do PT.
A corrupção entre a classe política Brasileira – incluindo o alto
escalão do PT – é real e substancial. Mas os plutocratas brasileiros, a
mídia, e as classes altas e médias estão explorando essa corrupção para
atingir o que eles não conseguiram por anos de forma democrática:
remover o PT do poder.
Ao contrário da descrição romantizada e mal informada (para dizer o
mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados “pelo
Povo”, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa
intensamente concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não
exclusivamente, mas majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos
cidadãos, que por muito tempo guardaram rancor contra o PT e contra
qualquer programa social que combate a pobreza.
A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores
dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os
perfis no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes
(e ricos) da Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando
uma gravação de escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula
vazou essa semana, o programa jornalístico mais influente da Globo,
Jornal Nacional, fez seus âncoras relerem teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante de um jornal, causando ridicularização generalizada
nas redes. Durante meses, as quatro principais revistas jornalísticas
do Brasil dedicaram capa após acapa a ataques inflamados contra Dilma e
Lula, geralmente mostrando fotos dramáticas de um ou de outro, sempre
com uma narrativa impactantemente unificada.
Para se ter uma noção do quão central é o papel da grande mídia na incitação dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos protestos do Tea Party.
Agora, imagine o que esses protestos seriam se não fosse apenas a Fox,
mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York Times e o
Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso é
o que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são controladas por
um pequeno número de famílias, virtualmente todas veementemente opostas
ao PT e cujos veículos de comunicação se uniram para alimentar esses
protestos.
Resumindo, os interesses mercadológicos representados por esses
veículos midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão
ligados à história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie
Nolen, correspondente no Rio para o canadense Globe and Mail: “Está
claro que a maior parte das instituições do país estão alinhadas contra a
presidente”.
De forma simples, essa é uma campanha para subverter as conquistas
democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os
resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob
uma bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato,
muitos na direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e
grupos nesses protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da democracia.
Nada aqui é uma defesa do PT. Tanto por causa da corrupção generalizada quanto pelas dificuldades econômicas, Dilma e PT estão intensamente impopulares entre
todas as classes e grupos, mesmo incluindo a base trabalhadora do
partido. Mas os protestos de rua – como inegavelmente grandes e
energizados – são direcionados por aqueles que tradicionalmente
apresentam hostilidade contra o PT. O número de pessoas participando
desses protestos – enquanto milhões – é muito pequeno em relação aos
votos que reelegeram Dilma (54 milhões). Em uma democracia, governos são
eleitos pelo voto, não por demonstrações de oposição na rua –
particularmente quando os manifestantes vem de um segmento social
relativamente limitado.
Como Winter informou: “No ultimo domingo, quando mais de um milhão de pessoas foram às ruas, pesquisas de opinião indicaram que
mais uma vez a multidão era significantemente mais rica, mais branca e
com maior educação formal do que a média dos brasileiros”. Nolen afirmou
algo similar: “A meia-dúzia de grandes demonstrações de movimentos
anti-corrupção no passado foram dominadas por manifestantes brancos e de
classes altas, que tendem a apoiar a oposição representada pelo PSDB e a
ter pouca apreciação pelo partido trabalhista de Rousseff”.
No
último final de semana, quando uma grande massa de protestos anti-Dilma
tomou diversas cidades brasileiras, uma fotografia de uma família se
tornou viral, um símbolo do que esses protestos realmente são. Mostrava
um casal branco e rico vestidos com adereços anti-Dilma que caminhava
com seu cachorro de raça, acompanhados pela babá negra – vestindo o
uniforme branco que muitas famílias brasileiras ricas exigem que suas
empregadas domésticas usem – empurrando um carrinho de bebê com os dois
filhos do casal.
Como Nolen apontou,
essa foto se tornou uma verdadeira síntese, da essência altamente
ideológica desses protestos: “Brasileiros, que são hábeis e rápidos com
memes, repostaram a foto com centenas de legendas sarcásticas, como
‘Apressa o passo aí, Maria, nós temos que ir ao protesto contra o
governo que nos fez pagar um salário mínimo para você’”.
ACREDITAR QUE AS FIGURAS
políticas agindo para o impeachment de Dilma estão sendo motivadas por
uma autêntica cruzada anti-corrupção requer extrema ingenuidade ou
ignorância. Para começar, as partes que seriam favorecidas pelo
impeachment da Dilma estão pelos menos tão envolvidas quanto ela por escândalos de corrupção. Na maioria dos casos, até mais.
Cinco dos membros da comissão de impeachment estão sendo também investigados por estarem envolvidos no escândalo político. Isso inclui Paulo Maluf, que enfrenta um mandato de prisão da Interpol
e não pode sair do país há anos; ele foi sentenciado na França três
anos atrás por lavagem de dinheiro. Dos 65 membros do comitê de
impeachment do congresso, 36 atualmente enfrentam processos judiciais.
No congresso, o líder do movimento pelo impeachment, o líder extremista evangélico Eduardo Cunha, foi descoberto que possuía múltiplas contas secretas
em bancos na Suíça, onde ele guardava milhões de dólares que os
promotores acreditam ser dinheiro recebidos como suborno. Ele também é
alvo de múltiplas investigações criminais em andamento.
Enquanto isso, o senador Aécio Neves, o líder da oposição brasileira
que foi derrotado por muito pouco na eleição contra Dilma em 2014, teve pelo menos 5 denúncias diferentes de envolvimento com o escândalo de corrupção. Uma das mais recentes testemunhas favoritas dos promotores acusou-o de aceitar suborno. Essa testemunha também implicou que o vice-presidente do país, Michel Temer, da oposição do PMDB iria substituir a Dilma caso ela fosse cassada.
E ainda tem o recente comportamento do juiz chefe que está supervisionando a investigação de corrupção e tornou-se um herói popular
por sua atuação agressiva durante as investigações de algumas das
maiores e mais poderosas figuras políticas do país. O juiz, Sérgio Moro,
essa semana efetivamente divulgou para a mídia uma conversa gravada,
extremamente vaga, entre Dilma e Lula, o que a Globo e outras forças
anti-PT imediatamente retrataram como criminosas. Moro divulgou a
gravação da conversa apenas algumas horas depois de ter sido feita.
AS MÚLTIPLAS E IMPRESSIONANTES crises que assombram o Brasil agora atraem substancialmente a atenção da mídia internacional.
O que é compreensível, já que o Brasil é o quinto mais populoso do
mundo e a oitava economia do mundo. Sua segunda maior cidade, o Rio de
Janeiro, é a sede das Olimpíadas deste ano. Porém, boa parte dessa cobertura internacional
é repetidora do discurso que vem das fontes midiáticas
homogeneizadas, anti-democráticas e mantidas por oligarquias no Brasil
e, como tal, essa informação é enviesada, pouco precisa e incompleta,
especialmente quando vem daqueles profissionais com pouca familiaridade
com o país (mas há vários repórteres internacionais que trabalham no Brasil fazendo um ótimo trabalho).
Seria difícil exagerar quando se afirma a gravidade da situação no Brasil em várias esferas. O trecho a seguir, publicado ontem por Simon Romero, o correspondente do The New York Times no Brasil, evidencia o nível de calamidade da situação:
O Brasil está enfrentando sua pior crise econômica das últimas décadas. Um enorme esquema de corrupção tem prejudicado a empresa pública petrolífera nacional. A epidemia de Zika espalha desespero ao longo da região Nordeste. E, pouco antes de hordas de estrangeiros vierem ao país para as Olimpíadas, o governo luta pela sobrevivência com quase todas as frentes do sistema político sob uma nuvem de escândalo.A extraordinária crise política brasileira apresenta algumas semelhanças com o caos liderado por Trump nos EUA: um circo sui-generis,
fora de controle, gerando instabilidade e libertando forças sombrias,
com um resultado positivo quase impossível de se imaginar. A antes
remota possibilidade do impeachment da presidenta Dilma Rousseff parece,
agora, provável.
Porém, uma diferença significante em relação aos EUA é que a agitação
no Brasil não se limita a apenas um político. O contrário é verdade,
conforme Romero comenta: “quase todas as frentes do sistema político sob
uma nuvem de escândalo”. O que inclui não apenas o PT, partido
trabalhista de centro-esquerda da presidenta – atravessado por casos
sérios de corrupção – mas também a grande maioria dos grupos políticos e
econômicos de centro e de direita que agem para destruir o PT, que
estão afundando em uma quantidade ao menos igual de criminalidade. Em
outras palavras, o PT é, sim, profundamente corrupto e banhado em
escândalos, mas, virtualmente, assim também são todos os grupos
políticos trabalhando para minar o partido e obter o poder que foi
democraticamente entregue a ele.
Quando a mídia internacional fala sobre o Brasil, ela tem focado nos
crescentes protestos de rua que pedem o impeachment de Rousseff. Essas
fontes midiáticas tipicamente mostram os protestos de forma idealizada,
com uma certa adoração: como movimentos de massa inspiradores que se
levantam contra um regime corrupto. Ontem, Chuck Todd, da NBC News,
retuitou Ian Bremmer (do Eurasia Group) descrevendo
os protestos anti-Dilma Rousseff como “O Povo contra A Presidente” – um
tema fabricado, condizente com o que é noticiado por grupos mídiáticos
brasileiros anti-governo, como a Globo:
Essa narrativa é, no mínimo, uma simplificação radical do que está
acontecendo e, mais provavelmente, uma propaganda feita para minar um
partido de esquerda há muito mal visto pelas elites políticas
dos EUA. A caracterização dos protestos ignora o contexto histórico da
política no Brasil e, mais importante, uma série de questões críticas:
quem está por trás dos protestos, quão representativos eles são em
relação à população brasileira e quais são seus verdadeiros interesses?
A ATUAL VERSÃO de democracia no
Brasil é bastante jovem. Em 1964, o governo de esquerda democraticamente
eleito foi derrubado por um golpe militar. Oficiais norteamericanos
negaram envolvimento tanto publicamente quanto perante o Congresso, mas –
nem precisaria ser dito – documentos e registros posteriormente revelados provaram que os EUA apoiaram diretamente o golpe e ajudaram em seu planejamento.
Os 21 anos de ditadura militar de direita pró-EUA que se seguiram
foram brutais e tirânicos, especializando-se em técnicas de tortura
usadas contra dissidentes políticos que eram ensinadas pelos EUA e pelo
Reino Unido. Um relatório compreensível da Comissão da Verdade, em 2014,
informou
que ambos os países “treinaram interrogadores brasileiros em técnicas
de tortura”. Dentre as vítimas, estava Rousseff, então guerrilheira da
esquerda democrata, presa e torturada pelo regime militar nos anos 70.
O golpe em si e a ditadura que se seguiu foram apoiados pelas oligarquias regionais e por suas grandes redes midiáticas,
lideradas pela Globo, a qual – de forma notável – apresentou o golpe de
1964 como uma nobre derrota de um governo esquerdista corrupto (soa
familiar?). Tanto o golpe quanto o regime ditatorial foram apoiados
também pela extravagante (e absurdamente branca) elite econômica do
país, além de sua pequena classe média. Como opositores da democracia
geralmente fazem, as classes altas viam a ditadura como uma proteção
contra as massas de população pobre, composta majoritariamente por
pessoas negras e pardas. Conforme o jornal The Guardian publicou
sobre informações da Comissão da Verdade: “Assim como em toda a América
Latina dos anos 60 e 70, a elite e a classe média se alinharam como o
regime militar para afastar o que elas viam como uma ameaça comunista”.
Essas divisões severas de classe e raça no Brasil continuam como dinâmica dominante. Segundo a BBC, em 2014, baseada em vários estudos:
“o Brasil apresenta uma das maiores níveis de desigualdade de renda do
mundo”. O editor-chefe do Americas Quarterly, Brian Winter, em
reportagem sobre os protestos, escreveu nessa semana:
“O abismo entre os ricos e pobres continua sendo o fato central da vida
no Brasil – e nesses protestos, isso não é diferente”. Se você quiser
entender qualquer coisa sobre a atual crise política no Brasil, é
crucial entender também o que Winter quer dizer com essa afirmação.
O PARTIDO DE DILMA, PT, foi
formado em 1980 como um partido socialista de esquerda clássica. A fim
de melhorar seu apelo nacional, o partido moderou seus dogmas
socialistas e se tornou, gradualmente, mais próximo dos chamados
social-democratas da Europa. Agora, existem partidos populares à sua esquerda; de fato, Dilma, por vontade própria ou não, defendeu medidas de austeridade para resolver problemas econômicos e passar confiança aos mercados estrangeiros, e justamente nessa semana assinou uma draconiana lei “anti-terrorismo”.
Ainda assim, o PT se mantém na centro-esquerda do espectro político
brasileiro, e seus apoiadores são, surpreendentemente, as minorias
raciais e classes pobres. Enquanto no poder, o partido promoveu reformas sociais e econômicas que levaram benefícios governamentais e oportunidades para tirar milhões de brasileiros da pobreza.
O Partido dos Trabalhadores está na presidência há 14 anos: desde
2002. Sua popularidade foi um subproduto do antecessor carismático de
Dilma, Luis Inácio Lula da Silva (universalmente referido como “Lula”). A
ascensão de Lula à presidência foi um símbolo poderoso da luta da
classe pobre no Brasil durante a democracia: um trabalhador e líder
sindical, de uma família pobre, que deixou a escola na segunda série e
não sabia ler até os 10 anos, preso pela ditadura por atividade na luta
sindical. O ex-presidente foi motivo de riso para elites brasileiras por
meio de um tom classista no discurso sobre seu jargão trabalhista e sua
forma de falar.
Depois
de tres tentativas infrutíferas de chegar à presidência, Lula provou
ser uma força política imbatível. Eleito em 2002 e reeleito em 2006, ele
deixou o cargo com taxas de aprovação tão altas
que foi capaz de garantir a eleição de Dilma, sua sucessora, antes
desconhecida pela população, e que foi reeleita em 2014. Há muito tempo
se cogita que Lula – um político que se opõe publicamente
a medidas de austeridade – pretende concorrer novamente para a
presidência em 2018 depois de completo o segundo mandato de Dilma, e
forças anti-PT se sentem petrificadas com a ideia de que Lula vença
novamente.
Embora a classe oligárquica da nação tenha usado o PSDB, partido de
centro-direita, de forma bem sucedida como um contrapeso, o partido foi
impotente para derrotar o PT em quatro eleições presidenciais
consecutivas. O voto é obrigatório, e os cidadãos de baixa renda
garantiram as vitórias do PT.
A corrupção entre a classe política Brasileira – incluindo o alto
escalão do PT – é real e substancial. Mas os plutocratas brasileiros, a
mídia, e as classes altas e médias estão explorando essa corrupção para
atingir o que eles não conseguiram por anos de forma democrática:
remover o PT do poder.
Ao contrário da descrição romantizada e mal informada (para dizer o
mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados “pelo
Povo”, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa
intensamente concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não
exclusivamente, mas majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos
cidadãos, que por muito tempo guardaram rancor contra o PT e contra
qualquer programa social que combate a pobreza.
A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores
dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os
perfis no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes
(e ricos) da Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando
uma gravação de escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula
vazou essa semana, o programa jornalístico mais influente da Globo,
Jornal Nacional, fez seus âncoras relerem teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante de um jornal, causando ridicularização generalizada
nas redes. Durante meses, as quatro principais revistas jornalísticas
do Brasil dedicaram capa após acapa a ataques inflamados contra Dilma e
Lula, geralmente mostrando fotos dramáticas de um ou de outro, sempre
com uma narrativa impactantemente unificada.
Para se ter uma noção do quão central é o papel da grande mídia na incitação dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos protestos do Tea Party.
Agora, imagine o que esses protestos seriam se não fosse apenas a Fox,
mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York Times e o
Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso é
o que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são controladas por
um pequeno número de famílias, virtualmente todas veementemente opostas
ao PT e cujos veículos de comunicação se uniram para alimentar esses
protestos.
Resumindo, os interesses mercadológicos representados por esses
veículos midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão
ligados à história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie
Nolen, correspondente no Rio para o canadense Globe and Mail: “Está
claro que a maior parte das instituições do país estão alinhadas contra a
presidente”.
De forma simples, essa é uma campanha para subverter as conquistas
democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os
resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob
uma bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato,
muitos na direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e
grupos nesses protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da democracia.
Nada aqui é uma defesa do PT. Tanto por causa da corrupção generalizada quanto pelas dificuldades econômicas, Dilma e PT estão intensamente impopulares entre
todas as classes e grupos, mesmo incluindo a base trabalhadora do
partido. Mas os protestos de rua – como inegavelmente grandes e
energizados – são direcionados por aqueles que tradicionalmente
apresentam hostilidade contra o PT. O número de pessoas participando
desses protestos – enquanto milhões – é muito pequeno em relação aos
votos que reelegeram Dilma (54 milhões). Em uma democracia, governos são
eleitos pelo voto, não por demonstrações de oposição na rua –
particularmente quando os manifestantes vem de um segmento social
relativamente limitado.
Como Winter informou: “No ultimo domingo, quando mais de um milhão de pessoas foram às ruas, pesquisas de opinião indicaram que
mais uma vez a multidão era significantemente mais rica, mais branca e
com maior educação formal do que a média dos brasileiros”. Nolen afirmou
algo similar: “A meia-dúzia de grandes demonstrações de movimentos
anti-corrupção no passado foram dominadas por manifestantes brancos e de
classes altas, que tendem a apoiar a oposição representada pelo PSDB e a
ter pouca apreciação pelo partido trabalhista de Rousseff”.
No
último final de semana, quando uma grande massa de protestos anti-Dilma
tomou diversas cidades brasileiras, uma fotografia de uma família se
tornou viral, um símbolo do que esses protestos realmente são. Mostrava
um casal branco e rico vestidos com adereços anti-Dilma que caminhava
com seu cachorro de raça, acompanhados pela babá negra – vestindo o
uniforme branco que muitas famílias brasileiras ricas exigem que suas
empregadas domésticas usem – empurrando um carrinho de bebê com os dois
filhos do casal.
Como Nolen apontou,
essa foto se tornou uma verdadeira síntese, da essência altamente
ideológica desses protestos: “Brasileiros, que são hábeis e rápidos com
memes, repostaram a foto com centenas de legendas sarcásticas, como
‘Apressa o passo aí, Maria, nós temos que ir ao protesto contra o
governo que nos fez pagar um salário mínimo para você’”.
ACREDITAR QUE AS FIGURAS
políticas agindo para o impeachment de Dilma estão sendo motivadas por
uma autêntica cruzada anti-corrupção requer extrema ingenuidade ou
ignorância. Para começar, as partes que seriam favorecidas pelo
impeachment da Dilma estão pelos menos tão envolvidas quanto ela por escândalos de corrupção. Na maioria dos casos, até mais.
Cinco dos membros da comissão de impeachment estão sendo também investigados por estarem envolvidos no escândalo político. Isso inclui Paulo Maluf, que enfrenta um mandato de prisão da Interpol
e não pode sair do país há anos; ele foi sentenciado na França três
anos atrás por lavagem de dinheiro. Dos 65 membros do comitê de
impeachment do congresso, 36 atualmente enfrentam processos judiciais.
No congresso, o líder do movimento pelo impeachment, o líder extremista evangélico Eduardo Cunha, foi descoberto que possuía múltiplas contas secretas
em bancos na Suíça, onde ele guardava milhões de dólares que os
promotores acreditam ser dinheiro recebidos como suborno. Ele também é
alvo de múltiplas investigações criminais em andamento.
Enquanto isso, o senador Aécio Neves, o líder da oposição brasileira
que foi derrotado por muito pouco na eleição contra Dilma em 2014, teve pelo menos 5 denúncias diferentes de envolvimento com o escândalo de corrupção. Uma das mais recentes testemunhas favoritas dos promotores acusou-o de aceitar suborno. Essa testemunha também implicou que o vice-presidente do país, Michel Temer, da oposição do PMDB iria substituir a Dilma caso ela fosse cassada.
E ainda tem o recente comportamento do juiz chefe que está supervisionando a investigação de corrupção e tornou-se um herói popular
por sua atuação agressiva durante as investigações de algumas das
maiores e mais poderosas figuras políticas do país. O juiz, Sérgio Moro,
essa semana efetivamente divulgou para a mídia uma conversa gravada,
extremamente vaga, entre Dilma e Lula, o que a Globo e outras forças
anti-PT imediatamente retrataram como criminosas. Moro divulgou a
gravação da conversa apenas algumas horas depois de ter sido feita.
Mas a conversa gravada foi liberada pelo juíz Moro sem nenhum
processo e, pior, com claras intenções políticas, não judiciais: ele
estava furioso de que sua investigação sobre Lula seria finalizada pela
nomeação dele ao gabinete de ministro feita por Dilma (ministros só
podem ser investigados pelo Supremo Tribunal). O vazamento planejava
humilhar Dilma e Lula e dar vazão para protestos nas ruas, e, no
entanto, acabou recebendo críticas, incluindo dos seus próprios fãs, de que estava abusando de seu poder tornando-se uma figura política. Pior, a gravação em si parece ter sido ilegalmente obtida porque foi feita depois da expiração do mandato feita pelo juiz Moro. O chefe da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, Felipe Santa Cruz, chamou a ação de Moro de “um nauseante constrangimento”.
Tudo isso deixa claro o perigo de que a investigação criminal e o
processo de impeachment não são exercícios legais para punir líderes
criminosos, mas mais uma arma anti-democrática usada por adversários
políticos para remover uma presidenta democraticamente eleita. Esse
perigo ficou nitidamente em destaque ontem, quando foi revelado que um juiz que emitiu uma ordem de bloqueio a nomeação de Lula ao gabinete feita pela Dilma tinha postado mais cedo no seu Facebook
inúmeras selfies dele marchando num protesto contra o governo no final
de semana. Como Winter escreveu, “Convencer o público de que o
judiciário brasileiro está ‘em guerra’ com o Partido dos Trabalhadores é
uma tarefa mais fácil agora do que duas semanas atrás”.
Não há dúvida de que o PT é repleto de corrupção. Existem sérios
indícios envolvendo o Lula que merecem ser investigados de maneira
imparcial e justa. E o impeachment é um processo legítimo em uma
democracia quando provado que o suspeito é culpado de vários crimes e a
lei deve ser seguida claramente quando o impeachment é efetuado.
Mas o retrato emergindo no Brasil em volta do impeachment e os
protestos nas ruas são bem mais complicadas, e muito mais ambíguas, do
que vem sendo dito. O esforço para remover Dilma e seu partido do poder
lembram mais uma clara luta anti-democrática por poder do que um
movimento genuíno contra a corrupção. E pior, foi armado, projetado e
alimentado por várias forças que estão enfiadas até o pescoço em
escândalos políticos, e que representam os interesses dos mais ricos e
mais poderosos segmentos sociais e sua frustração pela falta de
habilidade em derrotar o PT democraticamente.
Em outras palavras, tudo isso parece historicamente familiar,
particularmente para a América Latina, onde governos de esquerda
democraticamente eleitos tem sido repetidamente removidos por meios não
legais ou democráticos. De muitas maneiras, o PT e Dilma não são vítimas
que despertam simpatia. Grandes segmentos da população estão
genuinamente irritados com ambos por várias razões legítimas. Mas os
pecados deles não justificam os pecados dos seus antigos inimigos
políticos, e certamente não tornam a subversão da democracia brasileira
algo a ser celebrado.
Colaborou: Cecília Olliveira
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