Moro é o Alienista de Machado de Assis. Por Sidney Chalhoub, de Harvard
19 de março de 2016
Chalhoub. Ex-Unicamp, Chalhoub leciona agora História da América Latina e
do Caribe na universidade de Harvard.
Itaguahy é aqui e agora, diria talvez Machado de Assis, ao observar o
ponto ao qual chegamos. Ao inventar Simão Bacamarte, o protagonista de
“O alienista”, Machado mobilizou sem dúvida referências diversas, tanto
literárias quanto políticas. Parece certo que se inspirou também em
personagens históricas concretas, ou em situações de sua época que
produziam tais personagens.
Na década de 1880, habitante da Corte imperial, ele assistia havia
décadas à ciranda infindável de epidemias de febre amarela, varíola,
cólera, etc. e a luta inglória dos governos contra tais flagelos.
O pior da experiência era que o fracasso contínuo das políticas de
saúde pública, ou da higiene pública, como se dizia com mais frequência,
provocava, paradoxalmente, o aumento do poder de médicos higienistas e
engenheiros. Esses profissionais se encastelavam no poder público
munidos da “ciência” e da técnica que poderiam renovar o espaço urbano
de modo radical e “sanear” a sociedade.
Demoliam-se casas populares, expulsavam-se moradores de certas
regiões, reprimiam-se modos de vida tradicionais, regulava-se muita
cousa sob o manto do burocratismo cientificista. E as epidemias
continuavam.
Machado de Assis refere-se a esse quadro como “despotismo
científico”, em “O alienista” mesmo, ao descrever “o terror” que tomara
conta de Itaguahy diante das ações de Bacamarte. Havia inspetor de
higiene e engenheiro da fiscalização sanitária a agir com convicção de
Messias, cheios de autoridade, inebriados de seus pequenos poderes.
Simão Bacamarte, portanto, é desenhado d’après nature, para usar a
expressão daquele tempo meio afrancesado, por mais caricatural que a
personagem possa parecer. A arte imita a vida, segundo Machado de Assis,
quem sabe. A estória que contou é conhecida por todos, talvez uma das
referências intelectuais clássicas mais compartilhadas nesta nossa
república da bruzundanga.
Por isso é uma estória boa para pensar a nossa condição coletiva,
Brasil, março de 2016. Bacamarte queria estabelecer de maneira objetiva e
irrefutável os limites entre razão e loucura. Conseguiu amplos poderes
da câmara municipal, dinheiro para construir a Casa Verde, seu hospício
de alienados, e passou a atuar como que ungido por suas convicções
científicas.
Ao contrário do que imaginara inicialmente, encontrou uma diversidade
assombrosa de loucos. Se o eram mesmo, continuam conosco, como os
impagáveis loucos “ferozes”, definidos apenas como sujeitos grotescos
que se levavam muito a sério. A galeria de loucos que tinha a mania das
grandezas é quiçá a mais relevante em nossa situação atual. Havia o cara
que passava o dia narrando a própria genealogia para as paredes, aquele
pé rapado que se imaginava mordomo do rei, e outro, chamado João de
Deus, propalava que era o deus João.
O deus João prometia o reino do céu a quem o adorasse, e as penas do
inferno aos outros. Ainda hoje em dia Simão Bacamarte acharia material
humano de sobra para encher a Casa Verde. Se ampliasse a pesquisa para a
internet, ele teria de investigar a hipótese de a loucura engolfar o
planeta inteiro.
Afinal, segundo ele, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as
faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia”. Ou talvez não. Se
Bacamarte lesse e visse a grande mídia brasileira, é possível que
concebesse um conceito mais circunscrito de alienação mental. Sem a
cacofonia virtual estaríamos expostos apenas à monomania de uns poucos, e
a diversidade de opiniões é sacrossanta nesta nossa hora. Bendita
internet.
O messianismo cientificista de Bacamarte se foi. Mas o curioso é que a
ficção dele criou raízes na história brasileira, virou realidade.
Muitos dentre nós, de cabelo bem grisalho ou até nem tanto, lembrarão da
situação do país no final dos anos 1980 e no início da década seguinte,
a viver a passagem sem ponte da ditadura para a hiperinflação.
Em retrospecto, penso que havia um quê de continuação da ditadura
naqueles planos econômicos todos que produziram até uma nova caricatura
de Messias, o caçador de Marajás. Agora a população não era mais culpada
de viver na imundície e nos maus costumes, a causar epidemias de febre
amarela.
No entanto, estava inoculada pelo vírus da cultura inflacionária. Daí
vieram os czares da Economia ou ministros da Fazenda, ou que nome
tivesse aquela desgraceira. As “autoridades” daquela ciência cabalística
confiscavam poupança, congelavam preços, nomeavam “fiscais” populares
dos abusos econômicos, podiam fazer o que lhes desse na veneta. Mas dava
errado.
A inflação voltava, os caras não acertavam. Vinha outro plano, mais
confisco, mais arrocho salarial, e nada. Viveu-se assim por uma década,
ou mais. Cada ministro era um pequeno deus, cujo poder tinha relação
direta com a sua profunda ignorância sobre o que fazer para dar jeito na
bruzundanga.
Os higienistas do final do século XIX e os economistas do final do
século XX tinham muito em comum. Em algum momento, o despotismo
econômico se foi. Tinha de passar, passou. Tivemos democracia por algum
tempo, com todos os seus rolos, mas sem salvadores da pátria, o que era
um alívio. Livres, ainda que sob a batuta do deus Mercado, uma espécie
de messianismo sem Messias, ou sem endereço conhecido.
Eis que surge, leve e fagueiro, o messianismo judiciário.
De onde menos se esperava, a cousa veio. Simão Bacamarte encarnou de
novo, vive-se a história como a realização radical da ficção,
hiper-ficção. As operações de despolitização do mundo são as mesmas –no
despotismo científico do XIX, no despotismo econômico do XX, no
despotismo judiciário do século XXI.
De repente, num processo que historiadores decerto explicarão no
futuro, com a pachorra e a paciência daqueles que não vivem o presente
às tontas, pois não sabem esquecer o passado, um determinado poder da
república se emancipa dos outros, se desgarra, engole tudo à sua volta.
Em nome da imparcialidade, da equidade, da prerrogativa do conhecimento
(tudo igualzinho aos higienistas e aos economistas de outrora), eles
provincializam a nação inteira, e negam, a cada passo, o que professam
em suas perorações retóricas: agem de forma partidarizada, perseguem
determinados indivíduos e organizações, transformam a sua profunda
ignorância histórica num poder avassalador.
Todos sabemos como terminou a estória de Simão Bacamarte. Depois de
testar tantas hipóteses, de achar que a loucura poderia quiçá abarcar a
humanidade inteira, ele concluiu que o único exemplar da espécie em
perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais era ele próprio.
Por conseguinte, o anormal era ele, alienado só podia ser quem não
tinha desequilíbrio algum em suas faculdades mentais. Bacamarte
trancou-se na Casa Verde para pesquisar a si próprio e lá morreu alguns
meses depois. Pode ser que haja aí um bom exemplo. Alguém saberia dizer,
por favor, onde Machado de Assis deixou a chave da Casa Verde?
P.S. A semelhança entre Simão Bacamarte e um determinado juiz de
província do Brasil atual me foi sugerida por um amigo aqui de Harvard, a
quem agradeço pela inspiração. Obrigado a todos aqueles que saíram às
ruas, neste 18 de março, em defesa da democracia.
ponto ao qual chegamos. Ao inventar Simão Bacamarte, o protagonista de
“O alienista”, Machado mobilizou sem dúvida referências diversas, tanto
literárias quanto políticas. Parece certo que se inspirou também em
personagens históricas concretas, ou em situações de sua época que
produziam tais personagens.
Na década de 1880, habitante da Corte imperial, ele assistia havia
décadas à ciranda infindável de epidemias de febre amarela, varíola,
cólera, etc. e a luta inglória dos governos contra tais flagelos.
O pior da experiência era que o fracasso contínuo das políticas de
saúde pública, ou da higiene pública, como se dizia com mais frequência,
provocava, paradoxalmente, o aumento do poder de médicos higienistas e
engenheiros. Esses profissionais se encastelavam no poder público
munidos da “ciência” e da técnica que poderiam renovar o espaço urbano
de modo radical e “sanear” a sociedade.
Demoliam-se casas populares, expulsavam-se moradores de certas
regiões, reprimiam-se modos de vida tradicionais, regulava-se muita
cousa sob o manto do burocratismo cientificista. E as epidemias
continuavam.
Machado de Assis refere-se a esse quadro como “despotismo
científico”, em “O alienista” mesmo, ao descrever “o terror” que tomara
conta de Itaguahy diante das ações de Bacamarte. Havia inspetor de
higiene e engenheiro da fiscalização sanitária a agir com convicção de
Messias, cheios de autoridade, inebriados de seus pequenos poderes.
Simão Bacamarte, portanto, é desenhado d’après nature, para usar a
expressão daquele tempo meio afrancesado, por mais caricatural que a
personagem possa parecer. A arte imita a vida, segundo Machado de Assis,
quem sabe. A estória que contou é conhecida por todos, talvez uma das
referências intelectuais clássicas mais compartilhadas nesta nossa
república da bruzundanga.
Por isso é uma estória boa para pensar a nossa condição coletiva,
Brasil, março de 2016. Bacamarte queria estabelecer de maneira objetiva e
irrefutável os limites entre razão e loucura. Conseguiu amplos poderes
da câmara municipal, dinheiro para construir a Casa Verde, seu hospício
de alienados, e passou a atuar como que ungido por suas convicções
científicas.
Ao contrário do que imaginara inicialmente, encontrou uma diversidade
assombrosa de loucos. Se o eram mesmo, continuam conosco, como os
impagáveis loucos “ferozes”, definidos apenas como sujeitos grotescos
que se levavam muito a sério. A galeria de loucos que tinha a mania das
grandezas é quiçá a mais relevante em nossa situação atual. Havia o cara
que passava o dia narrando a própria genealogia para as paredes, aquele
pé rapado que se imaginava mordomo do rei, e outro, chamado João de
Deus, propalava que era o deus João.
O deus João prometia o reino do céu a quem o adorasse, e as penas do
inferno aos outros. Ainda hoje em dia Simão Bacamarte acharia material
humano de sobra para encher a Casa Verde. Se ampliasse a pesquisa para a
internet, ele teria de investigar a hipótese de a loucura engolfar o
planeta inteiro.
Afinal, segundo ele, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as
faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia”. Ou talvez não. Se
Bacamarte lesse e visse a grande mídia brasileira, é possível que
concebesse um conceito mais circunscrito de alienação mental. Sem a
cacofonia virtual estaríamos expostos apenas à monomania de uns poucos, e
a diversidade de opiniões é sacrossanta nesta nossa hora. Bendita
internet.
O messianismo cientificista de Bacamarte se foi. Mas o curioso é que a
ficção dele criou raízes na história brasileira, virou realidade.
Muitos dentre nós, de cabelo bem grisalho ou até nem tanto, lembrarão da
situação do país no final dos anos 1980 e no início da década seguinte,
a viver a passagem sem ponte da ditadura para a hiperinflação.
Em retrospecto, penso que havia um quê de continuação da ditadura
naqueles planos econômicos todos que produziram até uma nova caricatura
de Messias, o caçador de Marajás. Agora a população não era mais culpada
de viver na imundície e nos maus costumes, a causar epidemias de febre
amarela.
No entanto, estava inoculada pelo vírus da cultura inflacionária. Daí
vieram os czares da Economia ou ministros da Fazenda, ou que nome
tivesse aquela desgraceira. As “autoridades” daquela ciência cabalística
confiscavam poupança, congelavam preços, nomeavam “fiscais” populares
dos abusos econômicos, podiam fazer o que lhes desse na veneta. Mas dava
errado.
A inflação voltava, os caras não acertavam. Vinha outro plano, mais
confisco, mais arrocho salarial, e nada. Viveu-se assim por uma década,
ou mais. Cada ministro era um pequeno deus, cujo poder tinha relação
direta com a sua profunda ignorância sobre o que fazer para dar jeito na
bruzundanga.
Os higienistas do final do século XIX e os economistas do final do
século XX tinham muito em comum. Em algum momento, o despotismo
econômico se foi. Tinha de passar, passou. Tivemos democracia por algum
tempo, com todos os seus rolos, mas sem salvadores da pátria, o que era
um alívio. Livres, ainda que sob a batuta do deus Mercado, uma espécie
de messianismo sem Messias, ou sem endereço conhecido.
Eis que surge, leve e fagueiro, o messianismo judiciário.
De onde menos se esperava, a cousa veio. Simão Bacamarte encarnou de
novo, vive-se a história como a realização radical da ficção,
hiper-ficção. As operações de despolitização do mundo são as mesmas –no
despotismo científico do XIX, no despotismo econômico do XX, no
despotismo judiciário do século XXI.
De repente, num processo que historiadores decerto explicarão no
futuro, com a pachorra e a paciência daqueles que não vivem o presente
às tontas, pois não sabem esquecer o passado, um determinado poder da
república se emancipa dos outros, se desgarra, engole tudo à sua volta.
Em nome da imparcialidade, da equidade, da prerrogativa do conhecimento
(tudo igualzinho aos higienistas e aos economistas de outrora), eles
provincializam a nação inteira, e negam, a cada passo, o que professam
em suas perorações retóricas: agem de forma partidarizada, perseguem
determinados indivíduos e organizações, transformam a sua profunda
ignorância histórica num poder avassalador.
Todos sabemos como terminou a estória de Simão Bacamarte. Depois de
testar tantas hipóteses, de achar que a loucura poderia quiçá abarcar a
humanidade inteira, ele concluiu que o único exemplar da espécie em
perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais era ele próprio.
Por conseguinte, o anormal era ele, alienado só podia ser quem não
tinha desequilíbrio algum em suas faculdades mentais. Bacamarte
trancou-se na Casa Verde para pesquisar a si próprio e lá morreu alguns
meses depois. Pode ser que haja aí um bom exemplo. Alguém saberia dizer,
por favor, onde Machado de Assis deixou a chave da Casa Verde?
P.S. A semelhança entre Simão Bacamarte e um determinado juiz de
província do Brasil atual me foi sugerida por um amigo aqui de Harvard, a
quem agradeço pela inspiração. Obrigado a todos aqueles que saíram às
ruas, neste 18 de março, em defesa da democracia.
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