O nascimento da tragédia
Uma das maiores dificuldades de escrever para um caderno de cultura, hoje, é escrever sobre cultura.
Os livros se acumulam na cabeceira. Leio, trabalho, insisto, mas a cabeça vaga, escrava dos acontecimentos.
Dentre todos os grampos da Lava Jato, um, de menor relevância, me causou impressão.
Nele, dona Marisa solta um palavrão para desabafar com o filho o
incômodo com o panelaço. É uma conversa íntima, cuja reprodução em rede
aberta só serve a um desejo hediondo de satanizá-la.
Nenhum de nós sobreviveria a uma exposição pública dessa ordem, não é aceitável, não pode ser.
Mas o desconforto que experimentei não aplaca meu mal-estar com a
retórica populista de que a classe média não quer que o povo coma ou
ande de avião.
Trata-se de um primarismo tão nocivo quanto a vilania da divulgação da escuta.
Lula provou que a classe C é uma força econômica maior do que as classes
A e B reunidas, e deixou o Planalto com 83% de aprovação.
Empresas, produtores de conteúdo, o mercado publicitário –sou atriz,
vivi isso–, todos correram para retratar, satisfazer, conquistar a massa
de consumidores que ascenderam com Lula.
A classe média apoiou seu mandato.
A rejeição veio depois, com a Nova Matriz Econômica; com a queda do
barril do petróleo aliada à Lava Jato, que expuseram a gestão criminosa
da Petrobras. O descompasso veio com a seca e o aumento do custo de
energia, com a política fiscal irresponsável e a incapacidade de
articulação do Executivo.
Uma crise que culminou numa campanha eleitoral que retesou preços para
garantir votos, obrigando o governo recém-empossado a descumprir com sua
promessa de não reajustar juros e tarifas, empurrando a inflação para
dois dígitos.
Lula deveria ter assumido a Casa Civil há um ano; Dilma foi escolha
pessoal dele. Empossado, teria condições de refazer as bases do partido e
estaria, hoje, tão blindado quanto outros políticos ameaçados pelas
investigações.
Assusta ver um impeachment conduzido a toque de caixa por Cunha, mentor
das pautas-bomba, com o apoio de uma oposição que, muitas vezes, colocou
os próprios interesses acima dos do país.
Mas o PT alimentou o fogo amigo, preferindo nadar no sentido oposto ao
das demandas do governo a comprometer sua imagem com a reforma da
previdência.
Espanta a ausência de outras legendas na investigação, já que as
empreiteiras costumam distribuir benesses à direita e à esquerda. Agora,
com todas ameaçadas pela planilha de apelidos da Odebrecht, a chance de
acórdão é grande.
Afundada num buraco a céu aberto, em meio aos conchavos e trincheiras
armadas, resolvi consultar o oráculo e reler "O Nascimento da Tragédia",
de Nietzsche.
O homem dionisíaco, assim como Hamlet, diz ele, se defronta com a incapacidade de modificar a essência daquilo que o rodeia.
Para ambos, é ridículo e humilhante endireitar o mundo, pois só é
possível agir quando se está cego por uma ilusão. Tal consciência leva a
um estado de paralisia que não vê sentido na ação.
Soa familiar?
"Neste supremo perigo da vontade", conclui o filósofo, "aproxima-se qual feiticeira da salvação, a arte".
Só ela teria o poder de transformar o horror em sublime e o absurdo em comédia.
Urge recuperar esse poder transcendente.
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