Lula na Casa Civil: o que muda para a esquerda?
A presidenta Dilma Rousseff (PT) decidiu nesta quarta-feira nomear o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil. Os
impactos concretos disso são incertos. A entrada de Lula poderá dar uma
sobrevida ao governo Dilma, como poderá levar ainda mais as
investigações de corrupção para dentro do Palácio. Mas vale a reflexão: o
que isso muda para a esquerda socialista?
A primeira coisa que veremos serão suspiros de alívio e até
comemoração de parte da sociedade que sentiu o baque das manifestações
reacionárias e muito massivas do último dia 13. Faz sentido para quem
enxerga que existe um golpe de Estado em curso, onde uma grande
conspiração envolvendo as instituições da Justiça, a Polícia Federal, a
grande mídia, empresários, as Forças Armadas e até o Obama estariam
alinhadíssimos para derrubar Dilma.
Outros setores, bem mais entusiasmados – inclusive por estarem bem
mais encurralados – vão além: irão resgatar o discurso de que a entrada
de Lula irá significar um giro à esquerda no governo. Para acreditar
nisso é necessário uma boa dose de amnésia, de capitulação ou de uma
crença mitológica absurda. Ou os três juntos.
A força política de Lula é inquestionável. E ela é tão grande que
demonstrou ter capacidade de domesticar boa parte do movimento social e
construir aliança com boa parte da burguesia e seus representantes.
Demorou, mas hoje qualquer cabeça pensante identifica que o projeto
petista de poder foi balizado pela conciliação de classes e pela
coalizão com parte da direita tradicional e com setores do grande
capital, especialmente o tripé empreiteiras, agronegócio e capital
financeiro (acreditem: tem gente que afirma que esta política
conciliatória não daria certo, do ponto de vista da vertebração de um
projeto de esquerda, há mais de 13 anos... O PSOL surgiu justamente em
contraposição a este projeto).
Os setores que estão comemorando a entrada de Lula no governo
precisam decidir se isso significa um giro à esquerda do governo ou se o
ex-presidente irá reestabelecer o pacto de classes que sustentou seus
governos, abalado no governo Dilma. Se juntarmos estes dois aspectos em
uma única pergunta teremos uma resposta negativa implacável: é possível
fazer um governo de esquerda com uma reciclagem e ao mesmo tempo
repaginar uma política de conciliação de classes? A resposta que temos
pela experiência é: não!
Vale a suposição, com único objetivo de fazermos uma análise
conjuntural, de que Lula teria a intenção de dar a tal guinada à
esquerda (acreditem: tem gente esperando isso há mais de 13 anos,
argumentando que os governos petistas sempre estiveram sendo disputados à
esquerda).
Evidentemente, é preciso considerar antes de tudo a atual correlação
de forças da sociedade, os desdobramentos da Operação Lava Jato, a
reação da grande mídia, as movimentações de Cunha, do PMDB e do
Congresso e, ironicamente, se está correta a esperança dos petistas de
que o STF (o mesmo que julgou o “mensalão”) poderá fazer um “julgamento
mais justo” de Lula, caso de torne réu, do que o juiz Sérgio Moro.
Lembremos ainda que o cenário da conjuntura internacional favorável ao
modelo brasileiro de exportador de commodities mudou bastante em relação
ao período de auge do lulismo.
Deste ponto de vista, Lula estava em melhores condições para aplicar o
projeto petista em 2002, quando foi eleito pela primeira vez, do que
agora como ministro. Não vivíamos uma crise política, econômica, social e
ambiental como vivemos agora. Era o auge do pacto de classes. Mas muita
coisa mudou de lá pra cá. Principalmente porque no meio do caminho teve
junho de 2013, que fez massas explodirem com os podres pactos da
República. Dilma, apesar de defensora do projeto de conciliação, não foi
bem sucedida.
A crise econômica é a mais grave pelo menos dos últimos 25 anos. O
nível de desemprego crescente, a inflação exorbitante e a desconfiança
dos mercados, que não deve ser ignorada, pois ela pautou os governos
Lula, é enorme.
Na política o cenário também não é fácil, nem para o projeto petista,
nem para a classe trabalhadora (duas coisas bem diferentes). Há poucos
dias, o PMDB deu passos para se afastar do governo, e, consequentemente,
se aproximou mais da oposição de direita. Cunha, apesar de mais manchar
do que ajudar o processo de impeachment da direita tradicional, deve
também utilizar esta sua principal cartada para se manter no cargo. E a
Operação Lava Jato segue tomando grandes proporções, agora com o bônus
de não acusar somente os petistas, mas também grandes figuras do PMDB e
do PSDB.
A análise sobre a capacidade de Lula ressuscitar o defunto do projeto
petista não pode se resumir à questão do foro privilegiado que poderá
ter o ex-presidente. A reação exaltada sobre a entrada de Lula no
Planalto, alimentada tanto pela grande mídia como por petistas, por
motivos diferentes, segue a linha da insuportável falsa polarização e
empobrece o debate sobre o futuro do país. Para os primeiros é um
foragido da justiça, para os segundos é um exilado político.
Boa parte das políticas que deram sustentação aos governos petistas
também estão em xeque hoje. A começar pelas empreiteiras e grandes
construtoras que foram fundamentais para a existência do PAC e do Minha
Casa Minha Vida, por exemplo. O BNDES apostou aproximadamente metade de
seus recursos nelas nos últimos anos. E, não por coincidência, foram as
principais doadoras de campanha. Ou seja, são base fundamental do
projeto de conciliação. Acontece que eles não poderão se reunir com Lula
neste momento, pois estão presos. Algumas dessas empresas reduziram seu
lucro e já fazem demissões em massa.
O que poderá fazer Lula, por exemplo, para salvar os empresários da
educação beneficiados com a contrarreforma universitária e que hoje
assistem o número de matrículas cair e a inadimplência subir? O que fará
Lula para acalmar a Fiesp e reverter a desindustrialização do país? O
que fará para agradar os mercados e convencer a classe trabalhadora que
sua perda de direitos valerá a pena?
Pra quem tinha esquecido que a luta de classes existe e só lembrou
disso no último dia 13, não pode nem se enganar e muito menos enganar a
população de que a “volta” de Lula desliga este motor da História. O
verdadeiro pedido é da ajuda a Lula em dar sobrevida ao governo Dilma,
refazendo negociações mais amplas ainda com as elites e oligarquias mais
retrógradas deste país, com os banqueiros, megaempresários e o
agronegócio. E também com a grande mídia, que necessariamente terá que
fazer parte deste acordo (como fez nos governos petistas anteriores).
Para ser considerado um giro à esquerda, Lula teria que, em primeiro
lugar, rasgar a Carta ao Povo Brasileiro. Teria que, não só frear a
Reforma da Previdência de Dilma como desfazer a sua própria Reforma da
Previdência. Teria que romper com as elites e oligarquias. Teria que
fazer uma reforma política que democratizasse radicalmente o poder e os
meios de comunicação. Teria que fazer a auditoria da Dívida Pública e
deixar de pagar os banqueiros. Teria que fazer uma Reforma Agrária e
Urbana de verdade. Teria que demarcar terras indígenas e quilombolas.
Enfim, teria que fazer exatamente o oposto do que fez quando presidente.
E não há nada, absolutamente nenhum sinal, nem pela conjuntura nem pela
correlação de forças, de que ele fará isso.
Quase tudo é incerto. Lula pode ou não ajudar a travar o impeachment
de Dilma, pode ou não ajudar a trazer mais estabilidade política e
econômica, pode ou não resgatar parte da popularidade do governo. Lula
pode até fazer Dilma vestir bonezinho dos movimentos sociais. Mas é
totalmente alucinatório considerar que Lula fará deste governo um
governo de esquerda, pelo simples fato de que este não é o projeto
lulista de poder.
O projeto lulista de poder pressupõe a manutenção da engrenagem da
democracia pautada pelas elites econômicas. Tem em sua essência
exatamente o que está sendo categoricamente rejeitado em amplas camadas
da sociedade, da nova geração de ativistas que foi às ruas em junho de
2013 à classe trabalhadora hoje desesperançada. O fôlego que Lula dará
ao governo poderá significar a aceleração da morte estratégica deste
projeto. E o pouco ar da esquerda socialista deve ser usado para
organizar nas ruas os anseios por transformação radical da sociedade,
verdadeiramente à esquerda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário