sexta-feira, 25 de março de 2016

Brasil: Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer

Brasil: Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer -



Brasil: Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer

Leonardo Sakamoto

Julián
Fuks, um dos expoentes da nova geração de escritores brasileiros,
escreveu um artigo a pedido do jornal francês Le Monde sobre a crise
brasileira. Ele autorizou a publicação, aqui no blog, antes do texto
sair por lá. É uma análise à esquerda, que critica o governo e os
protestos, e nos lembra, nesse período difícil, que, apesar das trevas,
sempre há um amanhecer. Julián Fuks é autor de livros como A
Resistência, Procura do Romance e Histórias de Literatura e Cegueira.

Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer, por Julián Fuks

Um
alarido ensurdece a cidade. Afasto-me da escrivaninha onde não tenho
conseguido produzir nada, afasto-me deste texto que ainda não dispõe
sequer de uma palavra, e observo o ruído intenso a se criar. Pela janela
vejo sacadas ocupadas por homens e mulheres eufóricos, seus rostos
brancos contorcidos pela raiva, seus olhos ofuscados pelo brilho das
panelas que eles batem com alarde. Quero lhes pedir que parem, quero
lhes dizer algo forte que ainda não me ocorre, uma ânsia de palavras me
convoca, mas sei quanto é inútil falar. No Brasil das panelas, ouvir é
uma virtude em falta. Este país que grita tem pouco ou nada a dizer,
quer apenas emudecer tudo quanto lhe desagrade. No país das panelas,
discordar é a ofensa mais grave – ninguém quer aceitar qualquer dúvida
que possa abalar tantas verdades tácitas.

Pelas ruas passam carros
igualmente lustrosos, e suas buzinas rugem ainda mais alto. Um jovem
que passa de camisa vermelha ouve um insulto que meus ouvidos não
alcançam. Pela cidade reverberam, sem que eu as ouça, centenas de
agressões disparatadas, gritos histéricos de intolerância, gestos de uma
violência desmesurada. É como se uma guerra se gestasse, cogito por um
segundo e logo me arrependo, penso na Síria, na Nigéria, nos milhões de
refugiados: há ainda no Brasil um amplo domínio da normalidade.

Foto: Luis Moura/Estadão
Foto: Luis Moura/Estadão
A
cada semana, a cada dia, cada vez com mais intensidade, o alarido de
panelas é que me alerta quando algo importante se passa. Caminho até a
sala, ligo a televisão e é quase certo que verei a presidenta a
discursar, a anunciar alguma nova medida desesperada, batalhando sua
habitual falta de eloquência e tentando se mostrar ainda estável, ainda
vivaz. Quando se faz entender melhor, quando o silêncio entre suas
palavras não se alonga por tempo demais, ela acusa uma manipulação por
parte do Poder Judiciário, acusa a parcialidade da grande imprensa,
acusa o golpismo da oposição, afirma com clara preocupação que a
democracia está sob ameaça. Em poucas horas, já sei, a nova medida será
debatida com fervor por políticos tão exaltados quanto monocórdicos,
suas acusações a ecoar os gritos binários das ruas, do “Fora Dilma! Fora
PT!” ao “Não vai ter golpe!”. Calado diante da televisão, me pergunto
em que momento a política terá se tornado esta disputa pela voz que
ressoe mais alto.

Nos últimos dias, o cerne da discussão não é um
homem qualquer, é a figura central da política brasileira nas últimas
décadas, é unanimemente seu maior personagem: Lula oscila a cada dia
entre a prisão e o ministério. Tantas vezes vejo seu rosto, tantas vezes
contemplo seu semblante tenso e cansado, que não posso senão me lembrar
dos discursos enérgicos que dele ouvi tantos anos atrás. Penso num
tempo de militância enfática, de idealismo, de lutas populares, um tempo
em que a política não se resumia a esta batalha estéril. Penso no
operário que prometia o fim da miséria, da fome, da desigualdade, que
conversava com outras pessoas de panelas na mão – pessoas que não batiam
panelas, mas nelas cozinhavam, para si mesmas ou para uma elite
abastada. Penso nesse Lula de décadas passadas e me pergunto com alguma
nostalgia onde andará. Quando ouço seus discursos de agora, sua voz a se
inflamar contra a elite que o persegue, confesso que volto a sentir
algum resquício da esperança daquele tempo, sem saber se devo ou não me
envergonhar.

O país vive uma grave polarização, é o que afirmam
tantos analistas autorizados, o país está dividido e não aguenta mais.
Se está dividido e se trata de uma polarização ideológica, me ocorre
então que projetos opostos deveriam estar em questão, que direita e
esquerda deveriam estar em franco embate. Não é isso, no entanto, o que
se ouve no clamor das ruas, não é isso o que se ressalta na barafunda de
vozes que comentam a situação sem parar. No Brasil das discussões
acaloradas, os ideais de esquerda foram silenciados pela urgência da
crise, pela preservação de uma mínima estabilidade. No Brasil das
discussões acaloradas, os discursos de esquerda parecem ter sido
sequestrados – ou abafados pela potência e amplidão das muitas ameaças
autoritárias.

A polarização que o Brasil vive, afinal, parece ter
caráter bastante peculiar: a esquerda foi subtraída da equação e vivemos
uma polarização entre a direita e o direito. Parte da massa que toma as
ruas de verde e amarelo, bem-intencionada ou não, é incitada por alguns
dos líderes mais abjetos e retrógrados, figuras sinistras a apregoar a
prisão imediata e sumária de seus adversários, a abolição de um partido
inteiro, por vezes até o retorno dos militares ao poder. São os mesmos
congressistas que têm votado leis que ferem direitos elementares, que
propõem a redução da maioridade penal, eliminam conquistas trabalhistas,
revitimizam mulheres estupradas. Como espectador assustado, me
surpreendo a cada vez ao ver como esta nova direita é amparada por
grandes grupos midiáticos, a louvar um desejo de mudança que poderia ser
muito legítimo, mas que agora abriga os anseios mais violentos e
autocráticos.

Como espectador assustado, vejo como se desvia e se
desvirtua uma oportunidade única. Aos poucos, numa sequência de decisões
jurídicas questionáveis, uma investigação que poderia enfim combater a
corrupção sistêmica que nos acomete, que romperia enfim a promiscuidade
que se criou entre quase todos os partidos e as maiores empresas do
país, converte-se em outra coisa. Converte-se, fica evidente no teor
monotemático dos jornais, em uma perseguição implacável a figuras
específicas, a um partido, tendo como fim a anulação das eleições e a
destituição imediata da presidenta. Neste quadro, à esquerda sequestrada
parece restar apenas a defesa melancólica e necessária de um Estado
democrático de Direito – e esse é o grito tão pouco idealista que a
massa de vermelho repete, com razão, pelas ruas. À esquerda sequestrada
parece restar a mera preservação de um governo legítimo que, no entanto,
já não consegue agir como um governo de esquerda há muito tempo – ou
talvez nunca o tenha sido.

Pelo ruído das panelas e buzinas, do
alto da janela onde me alcançam tantos gritos, por um ínfimo instante
sinto como se vivesse um apocalipse. Logo me acalmo e penso melhor: o
equívoco de todas as narrativas apocalípticas é não perceber que sempre
houve um amanhecer depois das trevas, sempre houve um dia seguinte.
Volto então à escrivaninha e me permito escrever sobre um futuro de
discussões mais férteis, da luta contínua pelo fim das opressões e dos
privilégios, um futuro em que ainda caibam a justiça e o idealismo.

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